DOI: 10.1590/S0100-72032002000700002 - volume 24 - Agosto 2002
Paulo Cezar Feldner Jr, Leonardo Robson Pinheiro Sobreira Bezerra, Manoel João Bastista Castelo Girão, Rodrigo Aquino de Castro, Marair Gracio Ferreira Sartori, Edmund Chada Baracat, Geraldo Rodrigues de Lima
Introdução
A incontinência urinária de esforço é conceituada como toda perda de urina pelo óstio uretral externo, quando a pressão vesical excede a pressão máxima de fechamento uretral (PMFU), na ausência de atividade do músculo detrusor1. Tem causa multifatorial, sendo elemento gerador de exclusão social, interferindo na saúde física e mental da paciente e comprometendo sua qualidade de vida.
O diagnóstico da enfermidade é essencial, uma vez que a incontinência de esforço pode ser causada por deficiência esfincteriana ou por hipermobilidade da uretra. Sua diferenciação é prioridade antes de se propor um tratamento cirúrgico, uma vez que os procedimentos de colpossuspensão retropúbica tradicionais podem ter índices de falha de até 35% em pacientes com defeito esfincteriano2. Embora esta classificação permita distinguir duas bases fisiopatológicas distintas, é importante enfatizar que esta divisão não é absoluta. Existe um espectro no qual os dois tipos podem coexistir independentemente.
O termo "deficiência esfincteriana uretral intrínseca" refere-se a um subtipo de incontinência urinária de esforço causada pela inabilidade do mecanismo esfincteriano uretral em manter a coaptação da mucosa tanto no repouso quanto ao esforço físico3. Difere da hipermobilidade do colo vesical por fatores de risco diferentes, maior gravidade dos sintomas e pior resposta ao tratamento4.
Em geral a deficiência esfincteriana uretral intrínseca está associada a fatores de risco como a idade avançada, mielopatia congênita ou adquirida, hipoestrogenismo, cirurgias pélvicas radicais, radioterapia e cirurgias prévias para correção da incontinência urinária e/ou distopias genitais4. Do ponto de vista clínico, relaciona-se com perdas aos mínimos esforços, gravitacional ou com a mudança de posição5.
Alguns autores têm demonstrado que a pressão de perda urinária durante a manobra de Valsalva ("Valsalva leak point pressure" - VLPP) é método confiável na avaliação do mecanismo esfincteriano uretral e, portanto, no diagnóstico da deficiência esfincteriana uretral intrínseca6-8. A medida da VLPP é definida como sendo a menor pressão vesical, medida com volume conhecido, na qual se observa a perda de urina, durante aumentos da pressão abdominal9,10. Para McGuire et al.7 pacientes com incontinência urinária de esforço e VLPP inferior a 60 cmH2O provavelmente terão como etiologia a deficiência esfincteriana uretral intrínseca.
Outra forma de avaliação do esfíncter é feita pelo perfil pressórico uretral, em que se obtém parâmetros como a PMFU, comprimento funcional da uretra e pressão de transmissão abdominal à uretra1. Vários autores demonstraram que valores menores que 20 cmH2O da PMFU seriam sugestivos do defeito esfincteriano11-13.
O objetivo deste estudo foi avaliar a relação entre a pressão de perda à manobra de Valsalva e a PMFU com a queixa clínica de perda aos esforços em pacientes com o diagnóstico urodinâmico de incontinência urinária de esforço.
Pacientes e Métodos
Foi feito estudo retrospectivo no qual foram incluídas 164 pacientes, atendidas no período de janeiro a dezembro de 2001 no setor de Uroginecologia e Cirurgia Vaginal da UNIFESP/EPM. Todas apresentavam o diagnóstico de incontinência urinária de esforço e foram avaliadas por anamnese, exame físico e estudo urodinâmico (fluxometria, cistometria e perfil pressórico uretral).
A anamnese consistiu em questionário padrão pelo qual se inquiriu sobre a perda de urina aos mínimos, médios ou grandes esforços, bem como outros sintomas uroginecológicos (urgência miccional, urge-incontinência, disúria, hematúria, polaciúria, repleção vesical, força para iniciar a diurese, esvaziamento incompleto, enurese noturna e perda constante de urina).
As pacientes foram examinadas pela equipe de médicos do setor, em posição ginecológica e ortostática, sendo também realizada a classificação das distopias genitais existentes. Todas as pacientes submeteram-se a exame de urina (tipo I) e urocultura para descartar possíveis infecções urinárias. Utilizamos o aparelho Urosystem DS5600 de quatro canais para a realização do estudo urodinâmico. Todos os termos utilizados seguiram a padronização da Sociedade Internacional de Continência1.
O diagnóstico da incontinência urinária de esforço baseou-se na queixa clínica da paciente e na demonstração objetiva da perda urinária pela uretra por meio da manobra de Valsalva, na ausência de atividade do detrusor, durante a avaliação urodinâmica. Pacientes com evidência de instabilidade pura do detrusor não foram incluídas no estudo.
A fluxometria foi realizada nas pacientes com bexiga confortavelmente repleta utilizando-se fluxômetro com sensores de peso. Os principais parâmetros avaliados e seus respectivos padrões de normalidade foram o padrão da curva (bem definida), fluxo máximo (>15 mL/s), tempo de micção (<20 s), tempo para atingir o fluxo máximo (<10 s), resíduo vesical (<50 mL) e volume eliminado.
A cistometria foi realizada utilizando sonda uretral número 8 para infusão de água destilada, à temperatura ambiente, à velocidade de 100 mL/min, balão retal para medida da pressão intra-abdominal e cateter para medida da pressão intravesical. Os principais parâmetros avaliados foram o primeiro desejo miccional, a capacidade vesical máxima, a perda urinária, as contrações não inibidas e a pressão de perda. A pressão de perda foi realizada utilizando-se a manobra de Valsalva por 3 vezes consecutivas, com 200 mL de volume intravesical, considerando-se o menor valor de pressão em que a perda ocorreu. Quando não se observou perda urinária neste volume, não houve como determinar o valor do VLPP. Ressalte-se, contudo, que no decorrer do exame a perda foi caracterizada e feito o diagnóstico de incontinência urinária de esforço. Os exames foram realizados na posição sentada e supina. Valores de VLPP inferiores a 60 cmH2O foram considerados sugestivos de defeito esfincteriano uretral.
O perfil uretral foi realizado utilizando-se cateter de fluxo número 8, com a bexiga repleta e em posição supina. Os parâmetros avaliados foram a PMFU e o comprimento funcional da uretra.
Utilizaram-se, inicialmente, tabelas de contingência e o teste de c2 para verificar a proporção e a associação entre as variáveis pressão de perda e PMFU, baseando-se na queixa clínica da paciente de perda urinária aos esforços. Utilizaram-se, a seguir, a análise de variância (ANOVA) e o teste de comparações múltiplas de Tukey entre os grupos para verificar diferenças com relação à gravidade subjetiva da incontinência urinária. Fixou-se em 5% o nível de significância.
Resultados
Foram avaliadas 164 pacientes com o diagnóstico urodinâmico de incontinência urinária de esforço ou mista. A média de idade foi de 51,2 anos (19-82), sendo que 76 (47,2%) encontravam-se no menacme e 85 (52,8%) na pós-menopausa. A paridade média foi de 3,9 filhos (0-18). Em três pacientes não se obteveram os valores da pressão uretral por motivos técnicos.
A relação entre VLPP e a queixa clínica de perda urinária aos esforços está ilustrada na Tabela 1. Observamos correlação significativa (p<0,0001) entre os valores da pressão de perda com o grau subjetivo da incontinência, sendo que o grupo com pressão inferior a 60 cmH2O teve maior probabilidade de perda aos mínimos esforços.
Das 164 pacientes, conseguimos determinar o valor da VLPP em 107. Nestas utilizamos a análise de variância (ANOVA) para correlacionar os valores médios da pressão de perda conforme a queixa clínica (Tabela 2). Observamos valores menores da VLPP (69,1 cmH2O) no grupo de pacientes com queixa de perda aos mínimos esforços e 90,6 no grupo de pacientes com perda aos grandes esforços (p<0,05). Quando comparadas as diferenças entre os grupos, observamos menores valores significativos neste grupo com relação ao com queixa de perda aos grandes esforços.
A relação entre PMFU e a queixa clínica de perda urinária aos esforços está ilustrada na Tabela 3. Não observamos correlação entre seus valores e o grau subjetivo da incontinência (p = 0,69).
Da mesma forma, não observamos relação entre os valores médios da PMFU conforme a queixa clínica: 50,7 para perdas aos mínimos esforços, 56,0 para as pacientes com perda aos moderados esforços e 56,8 para as pacientes com perda aos grandes esforços (Tabela 4).
Discussão
Em 1981, McGuire et al.9 foram os primeiros a introduzir o conceito de incontinência urinária de esforço do tipo III ou defeito esfincteriano intrínseco. Observaram que, em pacientes após falhas de cirurgias retropúbicas, a despeito da posição anatômica, a uretra não atuava como esfíncter. Tais pacientes tinham deficiência no mecanismo esfincteriano caracterizado por colo vesical aberto, ao repouso, com mínima ou nenhuma mobilidade sob esforço.
Após esta observação, esforços têm sido feitos na definição, reconhecimento, demonstração objetiva e manejo da deficiência esfincteriana intrínseca, uma vez que constitui fator de risco para o sucesso cirúrgico14,15. Assim, a identificação pré-operatória destas pacientes é parte fundamental da propedêutica uroginecológica.
Embora parâmetros como história e exame clínico sejam são essenciais ao diagnóstico, os testes objetivos para a quantificação da função uretral são necessários para uma correta avaliação5. Não há, até o momento, padronização universal do diagnóstico do defeito esfincteriano uretral intrínseco16.
A função esfincteriana uretral é constituída por um componente ativo e outro passivo. O mecanismo passivo é composto pela musculatura lisa, posição retropúbica da uretra proximal, mucosa, plexo vascular submucoso e tecido conjuntivo periuretral. Tem como função a manutenção da pressão de fechamento e a capitação da mucosa em repouso. Já o mecanismo ativo é formado pela musculatura do esfíncter uretral e do assoalho pélvico, que mantém o tônus uretral constante e contraído durante o esforço17.
Desta forma, a pressão máxima de fechamento uretral avaliaria o mecanismo passivo, informando sobre sua integridade e tônus. Já a pressão de perda mediria a capacidade do mecanismo ativo, avaliando o componente intrínseco do esfíncter uretral sob esforço18.
Alguns autores demonstraram correlação entre os valores da pressão de perda e da pressão máxima de fechamento uretral19,20, ao passo que outros já não encontraram tal associação7,21.
Swift e Ostergard13 encontraram coeficiente de correlação de 0,562 entre os dois parâmetros. Identificaram uma fraca correlação clínica, uma vez que apenas 32% da variabilidade da pressão de perda foi pela variação da pressão máxima de fechamento uretral. Da mesma forma, Sultana19 encontrou resultados semelhantes ao estabelecer um coeficiente de correlação de 0,62.
Desde a sua introdução, a determinação da pressão de perda à manobra de Valsalva (VLPP) tem se mostrado clinicamente útil na avaliação do mecanismo esfincteriano e tem sido largamente utilizada como método diagnóstico7,22,23. É teste simples, realizado durante a cistometria, que avalia a interação entre a pressão vesical e a resistência uretral22. Entretanto, necessita ser padronizado com relação à espessura do cateter, volume vesical no qual a pressão é aferida e presença de distopias genitais importantes20,24.
Alguns estudos mostraram que a medida da VLPP é reprodutível desde que o método de medida e o volume vesical sejam constantes8. Encontraram excelente correlação intra e interexaminador. Bump et al.21 relataram alta reprodutibilidade do teste em 80% de mulheres com incontinência urinária de esforço. Porém, a metodologia da medida da pressão de perda é ainda controversa. Alguns estudos demonstraram variações na determinação da pressão utilizando diferentes parâmetros, como tamanho do cateter, volume vesical, local onde a medida foi realizada, tipo de fluído e posição da paciente24.
Na ausência de baixa complacência vesical, uma uretra normal suporta pressões abdominais de até 250 cmH2O sem que haja perda22. McGuire et al.7 relataram que 76% das mulheres com pressão de perda menor que 60 cmH2O têm incontinência urinária do tipo III, avaliadas por fluoroscopia. Observaram, também, que pressões de perda acima de 90 cmH2O, em geral, não se relacionam com defeito esfincteriano. Concluíram que, em mulheres com incontinência urinária de esforço, a pressão abdominal necessária para provocar a perda não se relaciona com a pressão máxima de fechamento uretral.
Nitti e Combs18 demonstraram forte correlação entre a gravidade da incontinência e a medida da VLPP, em que 75% das mulheres com sintomas importantes têm pressão de perda inferior a 90 cmH2O. Não observaram interação entre VLPP, idade e estado menopausal.
Da mesma forma, Cummings et al.25 concluíram que a pressão de perda menor que 65 cmH2O relacionou-se com grau acentuado de incontinência urinária em 77% das pacientes.
No presente estudo, observamos relação significativa entre o número de pacientes com VLPP inferior a 60 cmH2O e a queixa clínica, denotando sua interação com a gravidade da incontinência. Da mesma forma, os valores médios da pressão de perda foram significativamente menores no grupo com perda aos mínimos esforços quando comparados ao grupo com perda aos grandes esforços.
O perfil pressórico uretral, embora utilizado por diversos autores, tem sido relatado como inadequado, especialmente quando não associado com monitorização radiográfica7,16,22. A maioria dos autores utilizam cateter eletrônico do tipo "microtip", mais sensível que os cateteres de fluxo, embora seu uso seja limitado pelos custos e pelos artefatos. Em nosso setor, temos utilizado o perfil uretral com cateter de fluxo, sendo que valores inferiores a 45 cmH2O na pressão máxima de fechamento uretral são sugestivos de provável defeito esfincteriano.
Da mesma forma que a determinação da VLPP, a avaliação da pressão uretral também pode ser afetada por vários parâmetros, como o volume vesical, posição da paciente e velocidade de infusão. Observa-se diminuição da pressão máxima de fechamento uretral com o aumento da idade. Mulheres na pós-menopausa têm valores significativamente menores quando comparadas ao menacme.
Valores da pressão uretral inferiores a 20 cmH2O, utilizando "microtip", em pacientes com incontinência urinária de esforço, têm sido associados com alto risco de falhas (18-54%) em cirurgias de colpofixação retropúbica, sendo que vários autores recomendam precedimentos do tipo "sling", injeções periuretrais ou mesmo esfincter artificial11. Contudo, outros autores não demonstraram tal relação.
Usando dados já publicados, o valor preditivo positivo da PMFU na predição do sucesso de procedimentos de colpofixação retropúbica variou entre 82-93%, enquanto o valor preditivo negativo foi baixo, variando entre 4-53%. Em outras palavras, um alto valor da pressão de fechamento uretral prediz o sucesso nestes procedimento cirúrgicos, ao passo que valores inferiores a 20 cmH2O não podem ser considerados como indicadores fidedignos do diagnóstico de defeito esfincteriano e, portanto, predizer o insucesso cirúrgico5.
Segundo Swift e Ostergard13, a pressão de perda inferior que 60 cmH2O tem sensibilidade de 90%, especificidade de 64%, valor preditivo positivo de 56% e valor preditivo negativo de 93% no diagnóstico do perfil uretral baixo.
No presente estudo, não observamos interação entre o número de pacientes com valores da PMFU inferiores a 45 cmH2O e a queixa clínica. Da mesma forma, não houve correlação entre os valores médios da PMFU nos diferentes grupos de mulheres com incontinência urinária com queixa de perda aos esforços.
A disfunção do mecanismo esfincteriano deve ser suspeitada em mulheres com incontinência urinária de esforço, principalmente quando há possibilidade de correção cirúrgica. A determinação da pressão de perda à manobra de Valsalva fornece dados para a avaliação de mulheres incontinentes de forma dinâmica e com menores custos, sendo observada, neste estudo, relação direta com a severidade da incontinência. Contudo, sua técnica necessita ser padronizada e suas variações técnicas validadas.
Recebido em: 28/5/2002
Aceito com modificações em: 7/8/2002