DOI: 10.1590/S0100-72032008000700008 - volume 30 - Julho 2008
Juliana Marques Simões Villas-Bôas, Izildinha Maestá, Marcos Consonni
Introdução
Desde sua aplicação na obstetrícia, a doplervelocimetria fomentou descobertas sobre a fisiologia e a fisiopatologia da circulação fetal. Uma delas, difundida nas últimas duas décadas e bastante transformadora da prática clínica, é o fenômeno de redistribuição de fluxo sangüíneo pelo qual o feto responde à hipóxia, denominado mecanismo de centralização. Em outras palavras, observou-se que condições inadequadas de oxigenação intra-uterina desencadeiam processos de adaptação circulatória, os quais permitem ao feto preservar tecidos e funções vitais, aumentando a longevidade da gestação.
O emprego da doplerfluxometria em obstetrícia foi relatado em 1977. Nesta publicação inicial, as características hemodinâmicas da circulação na artéria umbilical foram descritas aplicando-se o Doppler contínuo, instrumento semelhante ao sonar, utilizado na ausculta dos batimentos cardíacos fetais, aqui associado ao registro gráfico das ondas de velocidade de fluxo1. A localização mais precisa da estrutura vascular tornou-se possível com o Doppler pulsátil, onde a imagem da estrutura anatômica é observada junto ao traçado do fluxo sangüíneo2. Desde então, com a evolução dos recursos tecnológicos, acumulam-se relatos que associam o Doppler das circulações materna e fetal a complicações clínicas na gestação3-6.
A compreensão da hemodinâmica fetal remete ao conhecimento do processo de placentação e modificações circulatórias no organismo materno, com estabelecimento da circulação útero-placentária.
Circulação útero-placentária
Durante a gestação, trocas nutricionais e gasosas ocorrem na placenta, interface física entre mãe e feto. Para garantir o crescimento, o desenvolvimento e a sobrevivência intra-uterina, a placenta induz modificações circulatórias que acabam por direcionar ao útero maior volume de sangue. Estudos de anatomia patológica descreveram as unidades estruturais, sítio desta transformação7: as arteríolas espiraladas, ramos terminais das artérias uterinas, as quais atuam como canais de comunicação com a cavidade do útero e o espaço interviloso. Representam, dessa forma, estruturas onde se dá a ligação sangüínea da mãe com o feto.
A boa adaptação materna à gestação8, do ponto de vista circulatório, compreende a "modificação fisiológica" no perfil hemodinâmico do útero, que passa a demonstrar baixa resistência ao fluxo sangüíneo, baixa reatividade vasomotora e alta complacência vascular, favorecendo a oferta de substratos para o feto7. Tal modificação depende de adequada interação entre miométrio e trofoblasto, este constituído de células placentárias que apresentam antígenos paternos. Assim sendo, esta interação parece depender de fatores imunológicos9, modulando a atividade migratória do citotrofoblasto em profundidade no leito placentário, rumo às arteríolas espiraladas7,10.
A adaptação vascular induzida pela placenta acontece em dois estágios, um no primeiro e outro no segundo trimestre de gestação, configurando a primeira e a segunda onda de invasão do trofoblasto.
O início da primeira onda ocorre na quinta semana de gestação11. Neste processo, as arteríolas espiraladas sofrem infiltração intersticial e endovascular das células trofoblásticas, com vasodilatação e progressiva substituição da camada íntima por material fibrinóide. Nesta etapa, as alterações estão limitadas ao endotélio do segmento intradecidual7,10,12.
Na segunda onda, entre a 16ª e a 20ª semana de gestação, a invasão progride para segmentos mais profundos, na intimidade do miométrio. A camada músculo-elástica das arteríolas espiraladas é substituída por tecido fibrinóide e fibroso, transformando-se nas artérias útero-placentárias7,10.
A doplerfluxometria das artérias uterinas apresenta, durante este processo, modificações progressivas caracterizadas por aumento da velocidade máxima e dos fluxos de volume, expressando a diminuição da resistência vascular. O resultado na onda de velocidade de fluxo deve ser observado após 24 a 26 semanas de gestação, pelo aumento da velocidade diastólica e desaparecimento da incisura aórtica. Tal achado indica bom estabelecimento da interface de troca materno-fetal e adequada adaptação circulatória à gestação5.
A migração incompleta do trofoblasto explica a insuficiência placentária e a seqüência de eventos relacionados à má adaptação circulatória na gestação7,8. Neste modelo, os efeitos serão percebidos em intensidades diferentes: na mãe, pelas síndromes hipertensivas; no ambiente intra-uterino, pelo oligoâmnio, aceleração de maturidade, infartos e descolamentos placentários, e, no feto, pela restrição de crescimento e fenômenos de redistribuição de fluxo sangüíneo, incluindo o mecanismo de centralização.
A insuficiência vascular placentária parece decorrer de inadequada interação entre trofoblasto e tecidos uterinos, provocando alterações qualitativas e quantitativas das arteríolas espiraladas do leito placentário10. As modificações fisiológicas ficam restritas ao segmento decidual, não sendo observadas na porção miometrial das arteríolas espiraladas. Portanto, não ocorre a segunda onda de invasão trofoblástica9,11.
Observa-se, ainda, nessa situação, redução no total de vasos que irrigam o espaço interviloso10, oclusão vascular por material fibrinóide e infiltrado perivascular mononuclear, em processo semelhante ao de aterose13. Como conseqüência ocorre isquemia, liberação de citotoxinas e outras alterações que consolidam a agressão vascular. Esse processo leva à redução do fluxo de troca materno-fetal no espaço interviloso e manutenção do perfil hemodinâmico presente antes da gestação, caracterizado por alta resistência ao fluxo sangüíneo e reatividade a estímulos vasoativos e baixa complacência vascular10.
Na doplervelocimetria das artérias uterinas, observa-se persistência da incisura aórtica e baixa velocidade diastólica, mantendo-se o padrão de resistência elevada após a 24ª ou 26ª semanas de gestação (Figura 1). Na literatura, está bem documentada a associação destas características doplervelocimétricas a complicações gestacionais como pré-eclâmpsia, restrição de crescimento intra-uterino e prematuridade14-17.
Circulação fetal e feto-placentária
A distribuição do oxigênio no feto inicia-se a partir do espaço interviloso, local da placenta ocupado pelo sangue materno que banha as vilosidades terciárias. Estas últimas correspondem a unidades vasculares de troca onde circula o sangue fetal em ramos terminais das artérias umbilicais. Uma vez oxigenado, o sangue das vilosidades dirige-se ao feto pela veia umbilical. Por este vaso apresentar o maior teor de oxigênio da circulação fetal, o encaminhamento do retorno venoso ao ventrículo esquerdo é fator decisivo no suprimento deste elemento a outros tecidos vitais, especialmente o cérebro, além do próprio coração18. Neste trajeto, a mistura com o sangue não oxigenado, e conseqüente redução no teor de oxigênio, é minimizada graças à existência de dois atalhos ou desvios, que devem desaparecer após o nascimento: o ducto venoso e o forame oval.
Cerca da metade do fluxo da veia umbilical é desviado pelo ducto venoso (primeiro desvio), circuito direto entre veia umbilical e cava inferior, contornando a microcirculação hepática. Neste território, observam-se os mesmos níveis de pH, pO2, pCO2 e saturação de oxigênio, daqueles obtidos na placenta18. O ducto venoso é estreito, com menos de 2 mm de comprimento e com um terço do calibre da veia umbilical, características que o tornam capaz de projetar, em alta velocidade para a veia cava, o sangue oxigenado que alcança o átrio direito de forma a seguir curso preferencial para o átrio esquerdo através do forame oval (segundo desvio). Neste trajeto, é minimizada a mistura com o fluxo lento e de baixa pressão de oxigênio da veia cava inferior que, chegando ao átrio, desagua no ventrículo direito. Do átrio esquerdo, o sangue rico em oxigênio chega ao ventrículo esquerdo, aorta ascendente e, assim, miocárdio e cérebro19.
O sangue desoxigenado que entra no ventrículo direito perfunde os pulmões, sendo que a maior parte atravessa o ducto arterial, alcançando a aorta descendente após o local de emergência das artérias carótidas e coronárias. As artérias umbilicais, ramos da ilíaca interna, rumam à placenta para o reabastecimento com oxigênio e nutrientes, constituindo a circulação feto-placentária.
A insuficiência vascular placentária, qualquer que seja sua etiologia, determina obliteração progressiva das arteríolas do sistema viloso terciário, desencadeando alteração do fluxo de reabastecimento fetal20.
Os parâmetros doplervelocimétricos da artéria umbilical refletem diretamente a resistência vascular na placenta. Neste vaso, as ondas de velocidade de fluxo em uma gravidez normal têm padrão característico: baixa resistência e alta velocidade de fluxo anterior, tanto na sístole quanto na diástole. No primeiro trimestre, o fluxo diastólico final está ausente e aumenta com o tempo de gestação devido à redução da resistência vascular. Esta mudança reflete o crescimento e amadurecimento da placenta, com maior número de vilosidades terciárias e dilatação de seus capilares. Na insuficiência placentária, a obstrução das arteríolas umbilicais, destruição do tecido placentário nas áreas de infarto e descolamentos na superfície de troca provocam aumento da resistência ao fluxo sangüíneo. A onda de velocidade de fluxo da artéria umbilical perde de forma progressiva o componente diastólico final, podendo tornar-se ausente ou reverso, na medida em que progride a disfunção placentária15,21 (Figura 2).
Esse aumento da resistência vascular feto-placentária promove respostas adaptativas cardíacas à custa do retorno venoso fetal objetivando a manutenção do débito cardíaco. O mecanismo principal neste sistema é o de Franklin-Starling, no qual a distensão das fibras musculares cardíacas promove o aumento da força contrátil e conseqüente elevação da fração de ejeção cardíaca, mantendo-se assim, o débito cardíaco fetal às custas da pré-carga cardíaca. Ocorrendo distensão máxima da miofibrila cardíaca, a descompensação cardíaca é inevitável, frente ao incremento do retorno venoso, à crescente impedância vascular placentária e à oxigenação inadequada do miocárdio. O enchimento ventricular fica comprometido devido ao aumento do volume residual diástolico; o átrio direito distende-se, e provoca fluxo retrógrado, em direção a VCI, durante sua contração. Nesse momento, observa-se no ducto venoso, redução da velocidade na onda A, a qual, ao invés de expressar o fluxo anterógrado habitual da contração atrial, torna-se zero ou reversa na falência do miocárdio22-24 (Figura 3).
Mecanismo de centralização
O conceito da centralização e suas repercussões sobre o feto foram bem definidos por Saling no final da década de 196025. A técnica Doppler permitiu investigação não invasiva, estabelecendo conhecimento mais aprofundado dos sinais circulatórios presentes na hipóxia intra-uterina em fetos humanos. Assim, em 1986, Wladmiroff, Tong e Stewart19, foram pioneiros em descrever esse fenômeno, denominado "brain sparing effect".
Observou-se que a circulação fetal responde de forma adaptativa à insuficiência placentária. A redução do fornecimento de oxigênio desencadeia mecanismos de compensação no feto que preservam tecidos nobres, cujas funções mantêm atividades vitais. Dentre esses mecanismos pode-se citar: poliglobulia, glicólise anaeróbia e o mecanismo de centralização fetal23. A hipoxemia fetal também gera redistribuição do sangue no território venoso, aumentando em 30 a 65%, a fração de sangue direcionada através do ducto venoso, contribuindo para manter a oxigenação dos órgãos nobres26.
O mecanismo de centralização é fenômeno de defesa ativo e temporário, desencadeado pelo estímulo de quimiorreceptores fetais na hipoxemia. Um maior fluxo de sangue é dirigido ao sistema nervoso central (centralização), miocárdio e glândulas adrenais pela redução da resistência vascular nestes territórios. Entretanto, outros órgãos sofrem prejuízo com a vasoconstrição desencadeada por aumento da atividade simpática (adrenalina e noradrenalina). Assim, baixo fluxo sangüíneo no intestino, pulmões e rins resulta em enterocolite necrotizante, broncodisplasia pulmonar e insuficiência renal com oligoâmnio27-31.
A vasodilatação cerebral produz aumento de fluxo sangüíneo suficiente para que a oferta de oxigênio mantenha-se constante, preservando as atividades biofísicas do feto. Este fenômeno evidencia-se com a doplerfluxometria da artéria cerebral média pelo aumento da velocidade diastólica e redução dos índices de resistência19, com valores diretamente relacionados à gravidade da hipóxia29,32 (Figura 4).
O mecanismo de centralização torna-se insuficiente à medida que piora a hipoxemia, ocorrendo redução compensatória no consumo de oxigênio pelo tecido cerebral5. A persistência desta condição desencadeia fenômeno de vasoplegia generalizada, caracterizado por modificações hemodinâmicas irreversíveis. O aparecimento de edema cerebral e aumento resultante na pressão intracraniana dificultam a perfusão sangüínea no cérebro. O edema cerebral, devido a acúmulo local de ácido lático, altera a permeabilidade da membrana celular, aumenta a pressão osmótica intracelular e conduz ao edema e necrose tissulares.
Na artéria cerebral média observa-se redução máxima da resistência vascular quando a pO2 do sangue da veia umbilical está entre dois e quatro desvios padrão abaixo da média normal para idade gestacional. À medida que se agrava o déficit de oxigênio, a resistência vascular tende a aumentar como resultado do edema cerebral, traduzindo vasoconstrição. Este fenômeno é conhecido como descentralização, sendo diagnosticado raramente, pouco antes do óbito intra-uterino29.
A centralização fetal traduz resposta compensatória do concepto. Entretanto, a duração e a eficácia desse mecanismo dependem da capacidade de adaptação e manutenção do equilíbrio hemodinâmico33. O tempo entre a instalação deste processo até o óbito é desconhecido, permanecendo entre um extremo e outro as complicações da morbidade perinatal relacionadas à asfixia34-35.
Conclusão
A insuficiência placentária é uma condição progressiva e irreversível, sendo tratada somente com a resolução da gestação. Porém, o momento ideal para se definir esta conduta é controverso e motivo de investigações. Envolve-se danos causados pela permanência intra-útero sob regime de hipóxia e complicações decorrentes da prematuridade. Neste sentido, a insuficiência placentária e a prematuridade caminham em sentidos opostos no estabelecimento do prognóstico fetal. Nestas situações, embora os avanços tecnológicos nas Unidades de Terapia Intensiva Neonatais tenham reduzido os índices de mortalidade e morbidade, decidir sobre a resolução da gestação permanece como um grande desafio.
Recebido: 2/7/08
Aceito com modificações: 25/7/08