Revista Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia

Avaliação de riscos teratogênicos em gestações expostas ao misoprostol

DOI: 10.1590/S0100-72032010000100004 - volume 32 - Janeiro 2010

Emérita Sátiro Opaleye, Helena Lutéscia Luna Coelho, Lavínia Schüler-Faccini, Paulo César de Almeida, Elaine Cavalcante dos Santos, Ana Júlia Velozo Ribeiro, Fabrício da Silva Costa

Abstract



Purpose
: failed attempted abortions with the use of misoprostol (Cytotec®) without medical indication have been associated with the occurrence of congenital malformations. The objective of the present study was to identify, in newborns with malformations and in normal controls, the frequency of exposure to misoprostol and the spectrum of associated malformations.

Methods
: this was a case-control study involving a daily survey at four public maternities in Fortaleza (CE) for the identification of newborns with malformations and paired controls (1:1) during the period from July to November 2005. The sample comprised 252 parturients interviewed by a trained team by means of a structured questionnaire based on the Latin American Collaborative Study of Congenital Malformations (Estudo Colaborativo Latino-Americano de Malformações Congênitas, ECLAMC). The questionnaire was used to obtain sociodemographic data and a family history of malformations, as well as to identify diverse forms of exposure during pregnancy, including misoprostol. Bivariate analysis and the chi-square test were used to compare cases and controls regarding their characteristics and factors associated with malformation, and the Odds Ratio was calculated to determine the chance of the Case Group to present malformations as compared to the Control Group after exposure to misoprostol.

Results
: there were no significant differences between groups regarding most of the risk factors for malformations investigated. Attempted abortion was reported by 6.8% of the mothers, with a higher exposure to misoprostol during pregnancy resulting in a greater proportion of malformed newborns, Odds Ratio (OR)=3.65 (95%CI=0.74-17.91). The spectrum of congenital defects encountered with exposure to misoprostol included defects of the central nervous, musculoskeletal, urogenital and cardiovascular systems, in agreement with literature data.

Conclusion
: the findings of this study suggest that fetuses exposed to misoprostol tend to be at higher risk of developing congenital malformations in comparison to non-exposed fetuses. Other studies should be encouraged for a better identification of the damage caused by the improper use of misoprostol, especially in countries where the control of medication is inadequate.

Full Text

Introdução

 

No Brasil, o aborto é amparado por lei somente em casos de risco de morte para a mãe ou de estupro. Apesar de proibido, é prática conhecida em nosso país, com estimativas divergentes, que variavam na década de 1990 entre 300 mil e 3,3 milhões de abortos ilegais realizados a cada ano. Dados mais recentes indicam uma redução no número de internações por abortamento registradas pelo Sistema Único de Saúde entre 1992 e 2005 (de 344.956 para 250.447) abrangendo todos os grupos etários, de 15 a 49 anos1. No entanto, a falta de estatísticas oficiais e de estudos com base populacional dificulta uma avaliação da magnitude do problema do aborto no Brasil. Os poucos dados disponíveis são obtidos por meio de pesquisas hospitalares, subestimando a população que recorre à prática.

 

Por outro lado, a redução nas internações hospitalares por abortamento nos últimos anos pode ser explicada pela utilização de métodos mais seguros, que não necessariamente obrigam a mulher a utilizar cuidados médicos. Um dos principais agentes referidos como a escolha para o aborto autoinduzido é o misoprostol (Cytotec®), utilizado com este fim desde seu lançamento comercial no Brasil, em meados da década de 19802.

 

Atualmente, com seu uso restrito à rede hospitalar no Brasil, o misoprostol é adquirido de forma clandestina, sendo uma alternativa para gestações indesejadas pela acessibilidade, segurança de uso e menor custo, segundo avaliação das próprias usuárias3. A experiência como abortivo rendeu aplicações do misoprostol na obstetrícia. Utilizado isoladamente ou em associação à mifepristona e metotrexato, via oral ou vaginal, em vários ensaios clínicos foi avaliada a eficácia abortiva do misoprostol4,5. Usado de forma clandestina e sem assistência médica, o misoprostol tem sua efetividade como abortivo questionada, uma vez que nos ensaios clínicos a porcentagem de falhas ocorre em até 10% dos casos6. Dessa forma, a gestação pode não ser interrompida e o feto é exposto a um risco de eventos adversos que ainda não é amplamente conhecido7.

 

Vários relatos de casos publicados nos últimos anos sugerem uma associação entre a exposição intrauterina ao misoprostol e malformações congênitas (MF). A principal delas é a sequência de Möebius, uma condição clínica rara caracterizada por paralisia de nervos cranianos com comprometimento ocular ou facial uni ou bilateral, frequentemente associada a MF musculares e ósseas nos membros superiores ou inferiores8,9. Uma meta-análise recente avaliou estudos de caso-controle envolvendo 4.899 casos e 5.742 controles, e verificou o aumento do risco de anomalia congênita associada ao misoprostol e especificamente de sequência de Möebius e defeitos de redução transversa de membros7.

 

Estudos prospectivos, no entanto, apresentam resultados controversos quanto a este risco. Em estudo com coorte, não foi encontrado efeito teratogênico ao comparar 86 grávidas expostas ao misoprostol com 86 não-expostas10. Por outro lado, em uma coorte de 4.862 mulheres grávidas observou um risco 2,6 vezes maior no grupo exposto ao misoprostol de o recém-nascido (RN) evoluir com MF congênitas quando comparado aos não-expostos11.

 

Nesse contexto, o presente estudo objetivou ampliar o conhecimento acerca da exposição fetal ao misoprostol por meio da comparação de recém-nascidos malformados e controles normais quanto à frequência de exposição ao misoprostol nas principais maternidades de Fortaleza.

 

Métodos

 

Foi realizado um estudo de caso-controle nas quatro principais maternidades públicas de Fortaleza, Ceará: Maternidade Escola Assis Chateubriand, Hospital Geral Dr. César Cals, Hospital Geral de Fortaleza e Hospital Distrital Gonzaga Mota de Messejana. Os hospitais foram selecionados por responderem juntos por mais de metade dos partos realizados por ano no município12 e três deles são hospitais de referência para resolução de partos com diagnóstico pré-natal de MF. A coleta de dados se deu no período de julho a novembro de 2005.

 

Os critérios de inclusão e exclusão seguiram o método do Estudo Colaborativo Latino-Americano de Malformações Congênitas (ECLAMC)13. Considerou-se caso o neonato vivo ou morto com peso igual ou superior a 500 g, independentemente do sexo, produto ou não de gestação única, diagnosticado com MF congênita no pré-natal ou durante o período neonatal até a sua alta hospitalar, nascido nas instituições da pesquisa no decorrer do estudo. Foi considerado controle o primeiro recém-nascido vivo ou morto, sem MF e de mesmo sexo, nascido no mesmo hospital imediatamente após a detecção de um caso. Na impossibilidade de se coletar os dados do primeiro RN após o caso, considerava-se o primeiro RN nascido a partir das oito horas do dia seguinte. Esta definição fornece um Grupo Controle pareado um a um por sexo, lugar e período de nascimento com o grupo de MF.

 

Antes do início da coleta, os hospitais foram visitados para apresentação do estudo e treinamento da equipe responsável pela notificação dos casos, havendo também a possibilidade de os hospitais notificarem casos de forma espontânea. A busca de RN que preenchiam os critérios de inclusão da amostra se dava através de telefonemas diários para cada um dos hospitais. Ao ser constatado um caso, ou mesmo uma suspeita, um entrevistador era acionado, seguindo-se escala de rodízio. A equipe era formada por dez estudantes de medicina previamente treinados por geneticista clínica e pela farmacêutica responsável pelo estudo. O entrevistador se deslocava até o hospital de origem para realizar entrevista com a mãe. Empregava-se um questionário estruturado e o mesmo entrevistador se responsabiliza por realizar a entrevista também com a mãe de um RN controle de acordo com os critérios já relatados. As entrevistas duravam em média 50 minutos.

 

O questionário continha 88 questões e foi adaptado do modelo utilizado pelo ECLAMC. Era um instrumento estruturado, com perguntas fechadas sobre três pilares: os genitores, o neonato e a gestação. Questionou-se sobre aspectos socioeconômicos dos pais, antecedentes familiares de defeito congênito e consanguinidade parental. Quanto ao RN, foram registradas características como sexo, peso, idade gestacional, tipo de parto, apresentação fetal e definição de MF, quando presentes. Em relação à gestação, foram investigadas, além da realização de pré-natal, diversas possíveis exposições que pudessem servir de confundidores na análise de risco do misoprostol. As principais foram: vacinas, doenças, medicamentos, álcool, tabaco, drogas ilícitas e fatores físicos. Foram ainda acrescidas questões específicas sobre planejamento e desejo da gravidez, tentativa de aborto e uso do misoprostol durante a gestação. Os questionários foram revisados imediatamente após a entrevista e comparados a outras informações oriundas de fichas de internação, prontuário médico e exames, e possíveis dúvidas eram elucidadas junto ao corpo clínico que acompanhava o caso. Os dados foram digitados em banco estruturado no Excel e duplamente checados para evitar erros de digitação.

 

A análise univariada se deu com a utilização das medidas estatísticas de frequência absoluta e relativa, média, mediana e desvio padrão. Para análise bivariada, com intuito de verificar a associação entre presença (caso) e ausência (controle) de MF e as principais variáveis, utilizou-se o teste não-paramétrico do χ2, teste de Fisher-Freeman-Halton e teste Z. Para todos os testes, fixou-se o nível de significância máximo de 5%. Foi calculada a Odds Ratio como aproximação do risco relativo entre RN malformados e associação ao uso de misoprostol na gestação. O programa utilizado para análise foi o Statistical Package for the Social Sciences (SPSS), versão 13.0.

 

As parturientes foram convidadas a participarem do estudo após explicações sobre os objetivos da pesquisa e apresentação do termo de consentimento livre e esclarecido. A pesquisa teve aprovação de Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Geral Dr. César Cals, cadastrado no Sistema Nacional de Ética em Pesquisa.

 

Resultados

 

O total de partos nas maternidades no período estudado foi de 6.978, dos quais 126 (1,8%) cumpriam os critérios para inclusão de RN como casos na amostra, tendo sido coletados também dados de 126 controles. Toda a amostra se apresentou homogênea quanto às características socioeconômicas. Em ambos os grupos, a maioria dos genitores era procedente do interior do Estado e tinha escolaridade fundamental incompleta. As mulheres estavam desempregadas ou eram do lar e os homens tinham ocupação sem qualificação formal. Setenta e oito por cento dos pais tinham união consensual, a maioria com tempo de convivência de um a cinco anos.

 

Tabela 1 reúne as principais características dos RN. As diferenças significativas encontradas entre os grupos dizem respeito aos já esperados desfechos desfavoráveis para RN com MF, já que são mais suscetíveis à restrição de crescimento e comorbidades associadas frente a RN saudáveis.

 

Na Tabela 2, comparamos a exposição aos principais fatores de risco biológicos para malformação congênita entre os grupos. Quanto à exposição a fatores físicos, cerca de 24% de toda a amostra relatou que sofreu algum tipo de traumatismo, radiografia, procedimento invasivo e choque elétrico, embora sem consequências para a gestação. Não houve diferença significativa quando comparadas frequências de exposição física entre os grupos caso e controle (p=0,7).

 

Os medicamentos foram os principais fatores de exposição química mencionados. Do total da amostra, 210 mães (83,3%) reportaram ter utilizado no mínimo um tipo de medicamento pelo menos uma vez durante a gestação, totalizando 383 exposições, com uma média de 1,8 medicamentos por gestante. Quando foram comparadas as frequências de uso por meio do teste Z, não houve diferenças de exposição entre os grupos. O único medicamento citado com risco X pela classificação da Food and Drug Administration foi o misoprostol, ou seja, medicamento contraindicado na gravidez porque o risco fetal se sobrepõe claramente a qualquer possível benefício para a gestante14.

 

A exposição a drogas durante a gestação concentrou-se principalmente em uso de tabaco e de álcool (15,9 e 8,3% da amostra total, respectivamente), sem diferenças significativas entre os grupos quando aplicado o teste do χ2 (p=0,117). Duas mulheres também mencionaram consumo de maconha e crack, porém, segundo relataram, não fizeram uso de misoprostol.

 

O planejamento da gravidez foi relatado por 35,7% da amostra, e quase o dobro teve um sentimento positivo ao saber da gestação (68%), não havendo diferença significativa entre os grupos. A frequência de mães que não planejaram, não desejaram a gestação e também negaram tentativa de aborto foi de 15,6%, número equivalente entre os grupos.

 

Sobre a amostra total, 13,1% afirmaram ter utilizado pelo menos um tipo de substância para "descer a menstruação", distribuídos em 19 casos e 14 controles, não havendo diferença entre os grupos (p=0,4). O uso de método abortivo durante a gestação foi declarado por 17 pacientes de uma amostra de 250 mulheres (6,8%), visto que um caso e um controle recusaram-se a responder. Destas, dez foram no grupo caso e sete no Grupo Controle (p=0,6).

 

O uso de misoprostol (Cytotec®) durante a gestação com finalidade abortiva foi relatado por 3,5% das entrevistadas, sendo 7/119 do Grupo Caso e 2/124 do Grupo Controle; OR=3,65 (IC95%=0,74-17,91).

 

As malformações detectadas na amostra de 126 RN classificados como casos foram ordenadas por sistema ou órgão acometido e por gravidade. No total, foram diagnosticadas 136 MF, totalizando uma média de 1,07 malformações/RN.

 

Mais da metade dos malformados teve diagnóstico pré-natal (54,8%, n=69) e 34,9% (n=44) dos casos foram detectados no primeiro dia de nascimento. Apenas 10,3% (n=13) tiveram diagnóstico tardio: a partir do segundo dia de nascimento, porém dentro do mesmo intervalo de tempo da internação consequente ao nascimento.

 

Tabela 3 apresenta o perfil de malformações avaliadas no período do estudo dentre os RN que foram expostos ao misoprostol durante a gestação, bem como algumas variáveis que poderiam estar envolvidas na relação de causa e efeito.

Discussão

 

Alguns cuidados foram providenciados para tentar controlar os vieses característicos dos estudos de caso-controle. Primeiro, foram selecionados os serviços responsáveis pela maioria dos partos realizados na cidade de Fortaleza para diminuir o viés de amostragem. Depois, a amostra foi pareada segundo gênero, local e tempo de nascimento de forma a tornar os grupos mais semelhantes, sendo o diagnóstico de malformação a única característica que os diferenciou. Ainda, para minimizar possíveis erros referentes à investigação retrospectiva, no caso de viés de memória materna, as entrevistas foram conduzidas com perguntas estruturadas com o objetivo de captar o uso de misoprostol de três formas: "tomou algo para descer a menstruação?", "tentou aborto?" e "usou misoprostol?". Da mesma forma, muitas informações oriundas das entrevistas foram confirmadas a partir dos prontuários e cartões de pré-natal das pacientes.

 

Entretanto, este estudo apresenta algumas limitações. A primeira diz respeito à própria temática investigada, podendo gerar omissão por parte das puérperas entrevistadas tanto pela ilegalidade do aborto quanto pelos sentimentos de culpa quanto ao diagnóstico de MF do filho. Quase 35% dos casos tiveram diagnóstico de MF após o nascimento, o que coloca estas mães diante de uma informação recente e dramática e dificulta ainda mais o acesso a essa população. Por fim, parte dos malformados nascidos nos hospitais do estudo pode não ter sido notificada pelas equipes consultadas seja pelo desgaste ou desinteresse dos informantes ou pela falta de diagnóstico e subnotificação dos casos.

 

Dados do Ministério da Saúde registram 43.800 nascidos vivos na cidade de Fortaleza em 2005. Destes, somente 216 tiveram registro oficial de algum tipo de anomalia congênita12. O presente estudo abrangeu 15,9% do total de partos realizados no serviço público na cidade de Fortaleza em 2005. No entanto, a amostra de RN malformados, excluindo-se os natimortos, compreendia 55% do total registrado oficialmente. Esses dados são conflitantes e revelam a subnotificação dos defeitos congênitos que, no Brasil, ocorrem em até 60,7% dos nascimentos, mesmo após a implementação de um campo específico para registro de MF na declaração de nascimento15. O acesso a tal informação poderia ampliar o conhecimento acerca da realidade brasileira sobre doenças congênitas, permitindo associá-las a possíveis riscos teratogênicos durante a gestação, como no caso do misoprostol. Este é o primeiro passo para o desenvolvimento de políticas efetivas focadas em prevenção.

 

No que tange às características dos RN investigados, as diferenças de peso, adequação de peso e idade gestacional, status ao nascimento e status na alta hospitalar encontradas entre os grupos caso e controle não interferiram na análise de causalidade de misoprostol sobre a MF, porque são eventos sabidamente decorrentes dos defeitos congênitos.

 

O presente estudo se baseou numa investigação multifatorial de causalidade, relacionando variáveis confundidoras, tais como fatores de risco biológicos, físicos e químicos para doença congênita. Em relação aos fatores de risco biológicos para MF, somente a apresentação pélvica ao nascer foi superior no Grupo Caso quando comparado ao Grupo Controle. A frequência de MF é maior entre as apresentações pélvicas (varia de 6 a 18%) e contribui significativamente para maior taxa de morbimortalidade, ocorrendo parto vaginal ou abdominal16.

 

No Brasil há alguns estudos que avaliam a amplitude da exposição de gestações a medicamentos17,18, o principal fator de exposição química da amostra desta pesquisa. O presente estudo detectou que 83,3% das mães entrevistadas referiram usar pelo menos um medicamento durante a gestação, frequência próxima à de 83,8% verificada por Mengue et al.19. Foi detectado um total de 383 exposições, perfazendo uma média de 1,8 medicamentos por gestante, inferior aos 2,3 medicamentos por gestante relatados 17.

 

É possível que por se tratar de medicamento e, portanto, com base no ponto de vista da saúde e da indústria farmacêutica, há uma maior aceitação entre as gestantes para a utilização do misoprostol, e este pode ser um fator facilitador de seu uso nessa população para provocar aborto. Além disso, estudos indicam que as mulheres buscam os métodos abortivos mais seguros e efetivos associados a menor efeito adverso e dor, à conveniência, que não seja invasivo e que seja econômico20. Estes aspectos podem classificar o misoprostol como método de escolha para o aborto clandestino no Brasil.

 

Perguntas introdutórias neste trabalho objetivaram captar de forma espontânea e independente a utilização do misoprostol, como o planejamento ou desejo da gestação, uso de algo para "descer a menstruação" ou tentativa de aborto. As gestações indesejadas são mais suscetíveis à prática do aborto, embora isso não implique necessariamente a sua realização. Mesmo assim, é importante destacar que, embora tenham negado tentativa de aborto, mais de 15% das mulheres entrevistadas não planejaram nem se sentiram felizes com a notícia da gestação, e 13,1% mencionaram ter utilizado algum método para induzir a menstruação, corroborando os 14,6% encontrados por Dal Pizzol et al.21.

 

O uso de misoprostol foi declarado por 53% das mulheres que mencionaram tentativa de aborto, valor próximo à taxa de quase 50% encontrada em estudo realizado no sul do Brasil22 e de 57% no Rio de Janeiro23. No entanto, foi bem inferior ao primeiro trabalho brasileiro de 1993, que apresentou o uso de misoprostol em 75% das tentativas de aborto24. Isso demonstra que apesar das recorrentes restrições comerciais impostas ao medicamento no país, por mais de uma década, depois de identificado a sua utilização como abortivo, os relatos de seu uso têm diminuído, porém o misoprostol ainda é vendido de forma clandestina e utilizado com essa finalidade.

 

A frequência de exposição do feto ao misoprostol na literatura varia de 2,2 a 10%, mas, na prática, devido às limitações dos estudos, pode-se vivenciar uma frequência maior21-23. Neste estudo, a despeito das possíveis limitações, 3,6% das gestações declararam terem sido expostas ao misoprostol, com maior notificação entre as mães de RN com MF.

 

Em relação ao espectro de malformações relacionadas ao uso do misoprostol no presente estudo, todas as condições, com exceção do RN com higroma cístico, obedecem a um padrão de defeitos congênitos citados em artigos publicados sobre uso de misoprostol e relação com MF congênitas7,8. Além disso, defeitos congênitos como pé equinovaro, defeito de redução de membros, agenesia de falanges e sindactilia são MF que podem ser explicadas por disrupção vascular, mecanismo associado a fortes contrações uterinas e que podem ser ocasionadas pelo misoprostol25. Por fim, as MF encontradas apresentam uma relação temporal de exposição ao misoprostol e surgimento da MF e de ausência de outros fatores de risco significativos (à exceção de um caso, pela consanguinidade dos pais).

 

Os achados deste estudo demonstraram que, mesmo diante das restrições de uso, não existe um controle efetivo do misoprostol, utilizado ainda hoje como método abortivo no Brasil. Apesar de inúmeros estudos indicarem o uso bem sucedido do misoprostol como método abortivo, é realizado sob cuidados médicos, com doses e vias de administrações adequadas e em associação a outros medicamentos, o que contribui para sua efetividade26-28.

 

Ao utilizarem o misoprostol de forma clandestina, as mães correm o risco de não abortarem e gestarem filhos com doenças congênitas, transferindo os riscos que anteriormente eram delas, por se submeterem às diversas práticas abortivas, para os fetos expostos ao misoprostol, que podem nascer com danos permanentes e limitantes29. É imprescindível que mulheres em idade fértil tenham acesso à informação sobre os possíveis riscos de doenças congênitas para o feto exposto ao misoprostol em tentativas mal sucedidas de aborto30.

 

Apesar de limitações no poder estatístico, os resultados deste estudo sugerem uma maior exposição ao misoprostol durante a gestação em RN malformados comparados a RN saudáveis, estando os primeiros mais suscetíveis a MF congênitas limitantes. Estes dados são também apropriados para posterior incorporação em meta-análises sobre o tema.

 

Agradecimentos

 

Apoio da Fundação Cearense de Amparo à Pesquisa (FUNCAP) - Bolsa para o Pesquisador principal.

 

Aos acadêmicos de Medicina pela coleta dos dados: André Alcântara, Carolina Arcanjo, Kathiane Lustosa, Leonardo Costa, Marcelle Parente, Nádia Viana, Renato Albano e Sara Arcanjo; à Milena Portela pela organização dos dados e treinamento da geneticista Dra. Erlane Marques Ribeiro.

 

Participação dos autores

 

Emérita Opaleye elaborou o projeto, coordenou a coleta de dados, discutiu os resultados e redigiu o artigo. Elaine Santos e Ana Júlia Ribeiro participaram da coleta e da organização dos dados. Helena Coelho e Lavínia Schüler-Faccini participaram da elaboração do projeto, discussão dos resultados e revisão do manuscrito. Paulo Almeida realizou as análises estatísticas e discutiu os resultados. Fabrício Costa desenhou o estudo, participou da elaboração do projeto, discutiu os resultados, idealizou e efetuou a revisão final do manuscrito.

 

 

 

Recebido 30/11/09

 

Aceito com modificações 14/1/10

 

Não há conflito de interesse

 

Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Ceará - UFC - Fortaleza (CE), Brasil.


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