DOI: 10.1590/S0100-72032010001200003 - volume 32 - Dezembro 2010
Flavia Barbosa Fernandes, Reginaldo Guedes Coelho Lopes, Sérgio Paulo de Mello Mendes Filho
Introdução
a malária é uma doença infecciosa parasitária causada pelo protozoário Plasmodium1 de transmissão vetorial, com elevada incidência em regiões tropicais. Constitui um importante problema de saúde pública em muitas partes do mundo, já que mais de 2 bilhões de pessoas estão expostas à infecção em aproximadamente uma centena de países. No Brasil, principalmente na região amazônica, registram-se por volta de 500 mil casos novos ao ano2,3.
Qualquer demora no tratamento da malária por P. falciparum, que é a forma mais grave da doença, pode significar uma piora importante no estado clínico do paciente, com aparecimento de diversas complicações potencialmente letais4. Nas grávidas, a imunodepressão associada ao período gestacional eleva a mortalidade5. Nessas pacientes, o quadro pode incluir desde a anemia severa até o choque séptico, passando pela hipoglicemia severa, assim como um aumento da morbimortalidade do produto gestacional traduzido por aumento da incidência de abortos e malária congênita6,7. Apesar do número de publicações sobre os efeitos da malária grave em gestantes e recém-nascidos7 ter aumentado nos últimos cinco anos, ainda existe lacuna no conhecimento nesta área8.
Métodos
Esse estudo retrospectivo, exploratório, constituiu descrição de dados coletados da base de dados secundários dos prontuários médicos. São referentes à internação de três pacientes gestantes portadoras de malária grave internadas na unidade de terapia intensiva do Hospital de Base Dr. Ary Pinheiro, em Porto Velho (RO), entre os anos 2005 e 2006.
Para caracterização da amostra, utilizaram-se como critérios de inclusão: pacientes do sexo feminino, gestantes, portadoras de malária grave por Plasmodium faliparum, internadas na UTI. Foram selecionados 3 casos consecutivos de 3 pacientes com idade gestacional entre a 20ª e 30ª semana, cuja média de idade foi de 21,3±2,1 anos (Tabela 1). Dos prontuários médicos, foram coletados os dados sociodemográficos e clínicos, analisando-se os dados na sua frequência (Tabela 1).
A malária foi adquirida e tratada inicialmente nas cidades onde as pacientes residiam (Tabela 1). Posteriormente, elas foram encaminhadas, devido ao agravamento da doença, para a enfermaria do Hospital de Base Dr. Ary Pinheiro que é referência para gestantes de alto risco, sendo finalmente admitidas na UTI desse hospital.
As variáveis categóricas utilizadas foram os critérios de classificação para malária grave da Organização Mundial de Saúde (OMS)9, a idade gestacional e os índices indicadores de gravidade de doenças em UTI: Acute Physiology and Chronic Health Evaluation (APACHE II)10 e Sepsis-related Organ Failure Assessment (SOFA)11,12, aplicados na admissão e entre o 10º e 13º dia de internação na UTI, respectivamente.
A idade gestacional foi definida como o tempo de amenorreia em semanas a contar do início da última menstruação, corrigido ou não por ultrassonografia. A média da idade gestacional nas internações foi de 24,6±5 semanas de amenorreia.
Os critérios clínicos utilizados pela OMS para determinar a gravidade da malária descritos no Quadro 1 foram aplicados às três gestantes no momento da admissão na UTI.
A clínica da síndrome de angústia respiratória do adulto (SARA) foi definida segundo os critérios internacionais13 como o início agudo de infiltrados pulmonares bilaterais, com quociente pressão parcial de oxigênio no sangue arterial/fração de oxigênio inspirado (PaO2/FiO2) <200, independente do nível de PEEP (positive end-expiratory pressure) na ventilação mecânica e, na ausência de clínica de hipertensão auricular esquerda ou de pressão capilar pulmonar >18 mmHg.
Resultados
Por ocasião da internação das pacientes na Enfermaria de Ginecologia/Obstetrícia do Hospital de Base Dr. Ary Pinheiro, havia quadro de febre, com temperatura axilar (TA) superior a 38°C, anemia grave e dispneia (Tabela 1). Na admissão à UTI, ocorrida entre o segundo e quarto dias de internação hospitalar, associaram-se ao quadro anterior insuficiência respiratória aguda (Tabela 2) e leucocitose acima de 17.000 células por mL (Tabela 3). O índice APACHE II foi aplicado a cada gestante no primeiro dia de internação na UTI revelando uma média de escore de 24±3,6 (Tabela 1).
Os motivos para admissão das gestantes na UTI foram: insuficiência respiratória aguda, choque periférico e edema agudo pulmonar não cardiogênico (Tabela 1) causado por insuficiência pré-renal aguda revertida com ressuscitação hídrica adequada. As gestantes permaneceram internadas na UTI por um período médio de 17 dias (mínimo de 13, máximo de 21 dias).
No presente estudo, as três pacientes evidenciaram critérios radiológicos de congestão pulmonar logo à admissão (Tabela 1) e evoluíram para o quadro de SARA posteriormente (Tabela 2) com PaO2 <70 mmHg. Próteses respiratórias foram utilizadas a fim de que pudessem receber suporte respiratório invasivo por meio de ventilação mecânica controlada com PEEP de 10 mmHg.
Hemotransfusões com concentrado de hemácias foram realizadas sempre que as gestantes apresentavam níveis de hemoglobina <8 mg/dL e com plasma fresco no caso de tempo de atividade de protrombina (TAP) inferior a 60%, plaquetopenia (abaixo de 50.000) mm3 ou sinal de sangramento ativo.
Terapia antimalárica com Arthemeter e Clindamicina foi instituída logo após exame de pesquisa para Plasmodium, com positividade para falciparum. Três exames controles de Pesquisa pesquisa para Plasmodium mostraram-se negativos para a parasitemia após o término do tratamento realizado dentro da UTI.
Para as três gestantes, foi necessário o uso de aminas vasoativas (noradrenalina e dobutamina) devido ao choque periférico causado pela sepse (Tabela 2). Duas das gestantes fizeram uso de noradrenalina e dobutamina desde a admissão na UTI.
Infecções nosocomiais foram diagnosticadas nas três pacientes. Todas elas apresentaram infecção pulmonar associada à ventilação mecânica, sem agente isolado, e a paciente número 3 apresentou infecção urinária, causada por Pseudomonas aeruginosa multirresistente à antibioticoterapia.
As três gestantes apresentaram quadro de trombocitopenia com plaquetopenia e TAP diminuído, sendo que a paciente número 1 foi admitida com trombocitopenia severa, hematúria e sangramento em local de punção venosa central controlados por hemotransfusões seriadas de plasma fresco.
Em nenhum dos casos foi registrada glicemia inferior a 60 mg/dL (Tabela 3), elevação de transaminases hepáticas superior a três vezes o normal ou necessidade de hemodiafiltração.
O lactato sanguíneo (Tabela 3), considerado marcador de hipoperfusão tecidual e utilizado como índice prognóstico em pacientes criticamente doentes, foi dosado diariamente e utilizado na confirmação da gravidade da evolução clínica juntamente do índice de SOFA.
Devido à evolução grave das gestantes, optou-se pela interrupção terapêutica da gravidez, via cesárea, entre o sétimo e o nono dia de internação na UTI. As gestantes foram a óbito entre o 13º e o 21º dias de UTI. Os fetos nasceram vivos e também evoluíram para êxito letal devido à prematuridade e baixo peso, alguns dias após o nascimento.
Discussão
este trabalho teve por finalidade descrever a complexidade da infecção por malária grave em gestantes, analisando-se três casos de pacientes grávidas que estiveram internadas na UTI do Hospital de Base Dr. Ary Pinheiro, nos anos de 2005 e 2006. A malária na gravidez poder levar a aborto, prematuridade, baixo peso fetal, anemia megaloblástica, mortalidade perinatal e mortalidade materna por septicemia2,6,14,15. As complicações mais importantes ocorrem em primigestas com sintomas clínicos exacerbados e parasitemia elevada. São comuns as lesões placentárias com a presença de parasitas e pigmento malárico. A infecção congênita ocorre em 0,3% dos casos de regiões não endêmicas, ou até 1 a 4% dos casos de regiões endêmicas.
A faixa etária e a gestação são fatores que propiciam um maior contágio pelo Plasmodium por meio da picada do anofelino. Cerca de um terço das gestantes hospitalizadas por malária tem menos de 20 anos de idade16; entre os casos deste estudo, a média de idade foi de 21,3 anos.
A malária grave é mais frequente nos casos com parasitemia por P. falciparum17 confirmando o que foi observado neste estudo, pois as três gestantes foram admitidas na UTI ainda com parasitemia positiva para esse tipo de Plasmodium. As complicações da malária grave foram identificadas tardiamente, o que retardou o tratamento adequado e facilitou a evolução clínica das gestantes para o choque séptico irreversível, mesmo com adoção de medidas, como a interrupção da gravidez.
A malária na gravidez pode cursar com manifestações clínicas graves2, como os quadros identificados neste estudo, exigindo melhor monitoramento das gestantes em ambiente ambulatorial5. O Ministério da Saúde obriga os postos de saúde responsáveis pelo controle pré-natal em áreas endêmicas de malária a realizarem a gota espessa em cada visita da gestante ao ambulatório, buscando-se evitar a indesejável evolução para os casos graves, culminando em desfecho fatal, como a evolução na amostra elencada18.
Como observado em outro estudo19, também as grávidas atendidas na UTI do Hospital de Base Dr. Ary Pinheiro procediam de áreas carentes de serviço médico apropriado, como as áreas rurais do município de Porto Velho, capital do Estado, e das cidades de Ariquemes e Jarú, no interior do Estado. Nessas regiões, o atendimento médico próximo ao local de moradia é precário e a malária tem maior endemicidade pela falta de saneamento e pela maior proximidade da residência ou do local de trabalho a igarapés, onde estão os principais criadouros de anofelinos20.
Deve-se observar que as características clínicas da malária grave dependem do estado imune da mulher determinado pela exposição ao plasmódio. As gestantes são mais propensas a adquirir doença grave do que as não grávidas16,17,21. No caso específico das gestantes, as diversas modificações adaptativas que ocorrem no organismo materno as colocam no grupo de alto risco e, como tal, devem receber atenção especial5.
Os critérios apontados pela OMS para caracterizar como malária grave o contágio pelo P. falciparum foram observados entre os casos descritos.
As complicações pulmonares geralmente ocorrem poucos dias após a infecção pelo P. falciparum em sua forma aguda e mesmo após o início do tratamento com antimalárico5. O edema pulmonar não cardiogênico pode evoluir para SARA.
A sepse é uma das causas mais frequentes de morbimortalidade em todo o mundo, sendo que nos Estados Unidos é a responsável por 2 a 11% de todas as admissões hospitalares20. A sepse na gestação é uma complicação rara e uma das cinco principais causas de mortalidade materna20-22. O quadro de sepse das gestantes em estudo foi um evento de evolução dramática, cujo foco foi ocasionado pelo contágio com o P. falciparum e amplificado pelas infecções nosocomiais20.
Em conclusão, o conjunto dos achados clínicos encontrados nas três pacientes com malária grave coloca em evidência o curso grave da doença que culminou no desfecho indesejável do óbito. A importância deste estudo está em justificar o aperfeiçoamento de programas de diagnóstico e tratamento nos serviços de assistência a gestantes e de perinatologia, visando ao tratamento adequado e oportuno e ao seguimento ambulatorial regular para prevenir a ocorrência de casos graves e, consequentemente, a morte por malária em gestantes.
Recebido 3/5/10
Aceito com modificações 15/12/10
Hospital de Base Dr. Ary Pinheiro Porto Velho (RO), Brasil.
Instituto de Assistência Médica ao Servidor Público Estadual de São Paulo IAMSPE, São Paulo (SP), Brasil.