DOI: 10.1590/S0100-72032010000200006 - volume 32 - Fevereiro 2010
Sonia Regina Ribeiro de Figueiredo Leite, Melania Maria Ramos de Amorim, Waldylene Barbosa Calábria, Tessália Natasha de Figueiredo Leite, Viviane Santos de Oliveira, José Alfredo Alves Ferreira Júnior, Ricardo Arraes de Alencar Ximenes
Introdução
A vaginose bacteriana (VB) é um distúrbio do ecossistema vaginal de etiologia polimicrobiana, em que há predomínio de micro-organismos anaeróbios. É a mais frequente causa de corrimento genital, responsável por 40 a 50% dos casos, sendo que cerca de metade das mulheres portadoras são assintomáticas1-3.
As bactérias que habitam a vagina são uma importante barreira de defesa do organismo4, representando um complexo sistema microbiológico, com cerca de 109 unidades formadoras de colônias bacterianas por grama de secreção e dúzias de diferentes espécies5. Os lactobacilos produtores de peróxido de hidrogênio (H2O2) mostram, in vitro, a capacidade de inibir várias bactérias, incluindo-se entre elas a Gardnerella vaginalis, os anaeróbios, a Neisseria gonorrhoeae, entre outras1. A proliferação de bactérias como Gardnerella vaginalis e Mobiluncus sp, pouco frequentes na flora vaginal normal, determina redução acentuada dos Lactobacillus ou Bacilos de Doderlein e elevação do pH vaginal acima de 4,5, propiciando o surgimento dos sintomas de VB6-8. A VB está associada a um risco aumentado de infecção pelo vírus HIV9. Mulheres de países com elevada frequência de HIV-AIDS, como Uganda, apresentam prevalência de VB superior a 50%10.
O decréscimo do número de lactobacilos, particularmente os produtores de H2O2 (principalmente L. crispatus e L. jensenii), parece ser o fator mais importante para o aparecimento de complicações associadas com a VB11,12. Como complicações da doença, devido à ascensão de bactérias anaeróbias ao trato genital superior, podem ocorrer endometrites, doença inflamatória pélvica aguda (DIPA) e infecções pós-cirúrgicas, como a celulite de cúpula vaginal pós-histerectomia8,12,13. Durante a gravidez, as infecções determinam abortamentos infectados, corioamnionites, amniorrexe prematura, parto pré-termo, endometrites e infecções de parede pós-cesárea3,14,15.
Estudos mostram que um dos fatores mais relevantes de risco para VB é o uso de dispositivo intrauterino (DIU). Outros fatores predisponentes seriam novos ou múltiplos parceiros sexuais, o uso de duchas vaginais, sexo oral, sexo durante as menstruações, entre outros6. O uso de métodos de barreira e anticoncepcionais orais parece proteger contra a VB2.
Um significante progresso tem sido alcançado no entendimento dos aspectos imunológicos da VB. Já foram identificadas uma IgA específica para Gardnerella vaginalis e foram observados altos níveis de citocina proinflamatória IL-1α na secreção vaginal de mulheres portadoras de VB16,17. Estudos subsequentes demonstraram também níveis de 10 a 20 vezes maiores de IL-1β nestas mulheres2. A citocina IL-8, um potente quimiostático e o fator ativador dos leucócitos polimorfonucleares (LPN), em geral, não estão aumentados na VB e podem explicar a ausência dos LPN nesta condição2.
Alguns autores têm demonstrado que a VB não é a mesma doença em todas as mulheres e que, entre as pacientes diagnosticadas como portadoras de VB, há uma grande variedade de diferentes microfloras18.
No presente estudo, que faz parte de um ensaio clínico, duplo-cego, randomizado, comparando dois diferentes tratamentos para VB, foi estudada a microbiota encontrada em culturas de conteúdo vaginal, em mulheres portadoras deste corrimento vaginal e também foi pesquisada a presença de lactobacilos nas citologias oncóticas realizadas.
Métodos
O presente estudo correspondeu a uma série de casos e foi realizado no Ambulatório da Mulher do Centro de Atenção à Mulher do Instituto Materno-Infantil Professor Fernando Figueira (CAM-IMIP), no Recife, Pernambuco, como parte de um ensaio clínico, randomizado, duplamente mascarado, que comparou dois esquemas tópicos de tratamento para VB, prescritos a mulheres atendidas em consulta ginecológica ambulatorial, por médico participante do projeto. Ao todo, 462 mulheres com queixas clínicas sugestivas foram encaminhadas para a pesquisa, tendo 277 participantes preenchido os critérios de inclusão, os quais foram: idade entre 18 e 40 anos e serem portadoras de VB diagnosticada, concomitantemente, pelos critérios de Amsel e Nugent. Foram excluídas do estudo mulheres grávidas ou com suspeita de gravidez, aquelas com história de uso de qualquer medicação (tópica ou sistêmica), principalmente antimicrobianos, nos últimos 30 dias, as que apresentassem candidíase ou tricomoníase, aquelas com integridade do hímen e as que relataram história sugestiva de DIPA. Nenhuma das pacientes selecionadas recusou-se em participar.
Os critérios descritos por Amsel et al.19 fazem o diagnóstico de VB, observando-se as características do corrimento genital de aspecto bolhoso, branco ou acinzentado; o pH vaginal maior que 4,5; a positividade do teste das aminas (whiff test), com odor de peixe exalando após a adição de duas gotas de hidróxido de potássio à 10% ao conteúdo vaginal; e a presença de células-guia (clue cells) em exame a fresco ou em esfregaço corado pelo Gram do corrimento genital. A presença de três destes critérios firma o diagnóstico clínico de VB19.
O critério desenvolvido por Nugent, Krohn e Hillier20, em 1991, consiste na coloração pelo Gram de esfregaço do conteúdo vaginal, com contagem dos morfotipos de lactobacilos, Gardnerellas/Bacteroides e Mobiluncus existentes. Os tipos morfológicos são quantificados de 1+ a 4+ de acordo com o número deles por campo e somados. Considera-se a VB com escore 7 ou acima de 7. Um escore de 4 a 6 é considerado intermediário e um de 0 a 3 é considerado normal20. É o método mais utilizado e avaliado em pesquisas para o diagnóstico da VB, sendo considerado padrão-ouro1,6.
Na consulta inicial, além dos exames referentes aos critérios diagnósticos citados anteriormente, foram também colhidos três swabs da secreção vaginal para cultura e lâmina com esfregaço duplo do colo uterino para citologia de Papanicolaou. O material foi semeado nos meios de Thayer Martin (gonococo), Sabouraud (fungos), Diamond (trichomonas) e ágar-sangue (anaeróbios). Foram realizadas, ainda, as dosagens de ureia, sacarose, maltose, glicose e lactose na secreção. Culturas em meios específicos para Gardnerella e Mycoplasmanão foram feitas. Nos esfregaços colpocitológicos foram identificadas as presenças de Gardnerella e Mobiluncus ou clue-cells e observada a ausência ou escassez de bacilos de Döderlein.
Após devidamente orientadas e esclarecidas sobre o projeto, todas as participantes assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido e tiveram seus dados sociodemográficos e reprodutivos coletados em questionário estruturado, aplicado por profissional treinado.
O presente estudo obedeceu aos postulados da Declaração de Helsinque e às recomendações da resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde. O projeto inicial foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do IMIP.
Resultados
Com relação à idade das 277 participantes do estudo, verificou-se que quase metade delas tinha de 25 a 34 anos (49,5%), seguida daquelas com 35 anos ou mais, as quais totalizaram 99 mulheres (35,7%). As mais jovens (18 a 24 anos) corresponderam a 14,8% do total. A média das idades foi de 31,4 anos com desvio padrão (DP) de 5,8. Chamou atenção a alta escolaridade das mulheres, tendo 59,9% delas mais de nove anos de estudo, o que equivale ao Ensino Médio e o Superior. As pacientes que nunca frequentaram a escola ou estudaram até quatro anos foram 49, número que representou 17,7% do total. Mais de metade das participantes da pesquisa (161 pacientes - 58,1%) tinha parceiro fixo no período da entrevista. Com relação ao uso de anticoncepção, 54,9% do total de mulheres utilizava algum método para evitar gestações, sendo os mais prevalentes a laqueadura tubária, realizada anteriormente em 61 mulheres (40,2%), e a pílula, mencionada por 50 participantes, o que correspondeu a 32,9% das usuárias. O DIU estava inserido em somente 21 pacientes, correspondendo a pouco mais de 13% do total. Apenas uma paciente relatou utilizar preservativo masculino como método anticoncepcional, sendo incluída nos dois casos designados como outros (Tabela 1).
Dentre as queixas clínicas referidas pelas mulheres durante a entrevista inicial, o corrimento genital, observado por 206 participantes (74,4%), e o odor de peixe da secreção vaginal, identificado por 190 pacientes, o que ocorreu em 68,6% dos casos, foram os mais frequentes. Outro sintoma bastante relatado foi o prurido genital, acusado por 112 mulheres (40,4%). Tanto a dispareunia de introdução, como a dispareunia profunda e o ardor foram queixas menos frequentes. Algumas mulheres queixaram-se de mais de um destes sintomas ao mesmo tempo.
Segundo o protocolo da pesquisa, o diagnóstico de VB foi firmado utilizando-se os critérios de Amsel e Nugent concomitantemente. A Tabela 2 demonstra o número de pacientes que apresentaram positividade para cada critério de Amsel separadamente. A presença de clue-cells foi positiva em quase todas as mulheres (275 a 99,3%), seguida pela positividade ao teste de Whiff, que foi observado em 266 participantes (96,0%), ficando em terceiro lugar a aferição do pH>4,5, o qual ocorreu em 92,8% dos casos. O critério menos frequente foi a presença de corrimento fluido e acinzentado, citado por 206 (74,4%) das participantes. Com relação aos critérios de Nugent, a Tabela 2 mostra o número de mulheres classificadas em cada escore considerado diagnóstico (7 a 10). A mediana foi o valor 8,0.
As colpocitologias oncóticas colhidas nas mulheres portadoras de VB mostraram presença muito escassa de lactobacilos, que estiveram presentes em apenas 8 citologias (2,9%) do total de 273 exames realizados (Tabela 3).
As culturas de conteúdo vaginal e os esfregaços corados pelo Gram permitiram a identificação de Gardnerella vaginalis, em 96,8%, e de Mobiluncus, em 53,1% dos casos. Apenas uma terça parte dos exames mostrou a presença de Lactobacillus (89 mulheres - 32,1%). Houve crescimento de fungos em culturas de 14 participantes (5,1%). Na maior parte dos casos, os resultados das culturas de conteúdo vaginal demonstraram a presença de Corynebacterium (94,2%), componente normal do ecossistema vaginal, cocos Gram-positivos (98,2%) e bacilos tanto Gram-positivos (99,3%), quanto negativos (91,0%) (Tabela 3).
Discussão
Com relação à idade, descrita como importante fator de risco para o desenvolvimento de VB, a distribuição percentual entre as diferentes faixas etárias no presente estudo correspondeu àquela verificada em trabalho anterior, em que a maior incidência ficou entre a terceira e a quinta décadas de vida21. Há, no entanto, resultados conflitantes, com predomínio de VB entre os 15 e 19 anos (41,1%), seguido da faixa dos 10 aos 14 anos (33,3%)22. Como a idade mínima para ingressar na presente pesquisa foi de 18 anos, não houve a participação de adolescentes, não sendo possível a comparação entre os resultados obtidos.
O grau de escolaridade das mulheres participantes foi considerado bom, tendo quase 60% delas estudado durante um mínimo de nove anos (Ensino Médio ou Superior). A metodologia utilizada não permite verificar associação entre a escolaridade e a VB, mas em recente trabalho, os anos de estudo não foram considerados como fator de risco para VB23. Um fator referido como associado ao aumento do risco de aquisição de VB é o fato de a mulher ser solteira, possivelmente devido a uma maior possibilidade de troca de parceiros. Na presente amostra, 58,1% das mulheres eram casadas ou tinham companheiro fixo. Não há um grupo de comparação que permita fazer uma avaliação se essa frequência é diferente daquela de mulheres sem VB.
Quanto ao uso de métodos contraceptivos, os mais utilizados foram a laqueadura tubária e os contraceptivos orais, achados compatíveis com a literatura consultada, a qual mostra serem os dois métodos, as opções contraceptivas preferenciais das mulheres pernambucanas e nordestinas, estando cerca de metade das mulheres já esterilizadas (51%) e 24% serem usuárias de métodos hormonais, principalmente a pílula24. A Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde da Criança e da Mulher, publicada em 2006, mostrou que 29% das mulheres no Brasil, atualmente vivendo em união conjugal, são esterilizadas, 21% tomam pílulas e pouco mais de 10% utilizam o preservativo masculino25. O uso de anticoncepcionais hormonais está associado com menor probabilidade de adquirir VB, assim como o uso consistente de condom23. O DIU, tradicionalmente associado à VB, esteve presente, nesta amostra, em 21 mulheres (13,8%)6.
Com relação às queixas clínicas apresentadas pelas pacientes no momento do diagnóstico de VB, foram prevalentes as clássicas de corrimento genital branco ou acinzentado e de odor de peixe do conteúdo vaginal. Estudos recentes mostram que apenas uma minoria das portadoras de VB refere queixas de corrimento (42%) e odor fétido (25%)26. O relato de corrimento genital, entre as portadoras ou não de VB, não mostrou diferença significante em pesquisa anterior26. As diferenças nas frequências das queixas referidas no estudo atual e naqueles que o antecederam se devem, provavelmente, ao fato de as pacientes terem sido indagadas quanto ao sintoma, o que deve ter determinado a frequência aumentada de resposta afirmativa. As queixas de ardor e prurido vaginais referidas pelas mulheres foram consideradas inesperadas, em virtude destes sintomas, em geral, não estarem presentes na VB, sendo frequentes nos casos de candidíase, a qual não pode ser identificada nos esfregaços vaginais destas pacientes, realizados naquele momento. Já foi observada alta incidência de queixas vaginais como prurido, queimação, corrimento, odor e vermelhidão, que não puderam ser associadas com a presença de nenhum organismo específico5. Também não foi possível relacionar as queixas de dispareunia, tanto a superficial como a profunda, com o quadro de VB.
A pesquisa dos diferentes critérios diagnósticos de Amsel mostrou que o mais vezes positivo foi a presença de clue-cells, demonstrada na quase totalidade dos casos (99,3%), seguida do teste de Whiff, positivo em 96% das portadoras de VB. No entanto, foi descrito como critério mais sensível para o diagnóstico de VB, o pH vaginal (89%) e o de maior especificidade, o odor de peixe (93%)6. O corrimento branco ou acinzentado é, dentre os critérios diagnósticos de Amsel, o que apresenta menor especificidade (54%)6,27.
O critério de Nugent tem apresentado especificidade de 83% e sensibilidade de 89% quando comparado com os sinais clínicos28, embora seja pouco utilizado na prática clínica, por requerer mais tempo para sua realização e um profissional treinado na leitura das lâminas29. O escore avalia o número de Lactobacillus (bacilos Gram-positivos, grandes) somado ao de Gardnerella (organismos cocobacilares Gram-negativos) e ao de Mobiluncus (bacilos curvos, finos, Gram variáveis). O escore mais encontrado, no presente estudo, foi 8, que correspondeu também à mediana. Estudos têm demonstrado diferentes morfotipos bacterianos entre as mulheres com escores de Nugent entre 7 e 10, reforçando a hipótese de que os diferentes perfis da VB estão associados com diferentes variáveis demográficas e sinais clínicos. Mobiluncus são associados com maior presença de clue-cells e maior frequência de liberação de aminas após contato com hidróxido de potássio18.
Quanto à avaliação da microbiota vaginal, em apenas oito mulheres foram observados lactobacilos nos esfregaços colpocitológicos, o que correspondeu a 2,9% do total. A colpocitologia oncótica não é adequada para o diagnóstico de VB, pois a identificação da presença dos micro-organismos não firma o diagnóstico, por estarem presentes também em pacientes assintomáticas8 e por não ser um exame de escolha para avaliação da microbiota vaginal, provavelmente porque é colhido material da cérvix e não da vagina30.
A microbiota vaginal normal apresenta um total de 108 a 109 de colônias bacterianas por mililitro de secreção vaginal, sendo que a concentração de espécies aeróbias e anaeróbias varia em diferentes momentos do ciclo menstrual. Qualitativamente, o número de diferentes espécies bacterianas varia de 17 a 29, enquanto quantitativamente, os anaeróbios são cerca de cinco vezes mais frequentes que os micro-organismos aeróbios31.
Na pesquisa em questão, em culturas de secreção vaginal realizadas na primeira consulta, antes de instituído o tratamento, observou-se predomínio de Gardnerella, identificada em 96,8% dos casos, seguido dos Mobiluncus, presentes em 53% das mulheres. A Gardnerella vaginalis e os anaeróbios podem ser isolados de mulheres com ecossistema vaginal normal, porém na vigência de VB, suas concentrações aumentam inúmeras vezes, associadas ao declínio acentuado dos lactobacilos31. Os Lactobacillus, como esperado, só estiveram presentes em 32% das amostras, enquanto os fungos cresceram em 5% dos casos estudados. A Candida, normalmente presente na secreção vaginal, em algumas condições adversas, como a diminuição dos lactobacilos e alteração do pH vaginal, podem proliferar e provocar uma vulvovaginite22. A proliferação de cocos está mais relacionada à invasão de bactérias provenientes do meio externo por hábitos higiênicos inadequados do que propriamente a alterações do pH vaginal21.
Como conclusões, poder-se-ia destacar a predominância dos sintomas clássicos de corrimento genital e odor fétido de peixe entre as portadoras de VB, sendo os demais sintomas menos prevalentes. A presença de clue cells nos esfregaços vaginais das mulheres e o odor característico de peixe exalado nos testes de Whiff foram os critérios clínicos mais observados no diagnóstico de VB. Houve predominância do escore 8 no critério bacteriológico, embora este número provavelmente represente diferentes microbiotas vaginais, com diferentes populações bacterianas. As colpocitologias não se prestam para diagnóstico de VB, porém a presença de lactobacilos foi extremamente baixa nos exames realizados, podendo levantar a suspeita diagnóstica.
Recebido 24/11/09
Aceito com modificações 18/1/10
Instituto de Medicina Integral Prof. Fernando Figueira - IMIP - Recife (PE), Brasil.