DOI: 10.1590/S0100-72032010000200003 - volume 32 - Fevereiro 2010
Zilma Silveira Nogueira Reis, Ana Paula Brum Miranda, Cezar de Alencar Lima Rezende, Renan Bragança Detofol, Carolina Ribeiro Costa, Antônio Carlos Vieira Cabral
Introdução
As consequências do diabetes mellitus (DM) mal controlado durante a gestação podem ser de elevada gravidade, tanto para mãe quanto para o feto. O risco de cardiopatias congênitas entre filhos de mães diabéticas está relacionado à qualidade da assistência à saúde prestada a estas gestantes1. O DM tipo 1 e o 2 estão associados com uma elevação no risco de malformações congênitas. Um controle glicêmico insatisfatório no momento do diagnóstico ou o início dos cuidados está associado ao aumento do risco de anomalias fetais2.
O DM materno é capaz de afetar o coração fetal estruturalmente e funcionalmente. Na gestação precoce há um efeito teratogênico primário na cardiogênese. Na gestação tardia a doença maternal associa-se à miocardiopatia hipertrófica3-5. Cardiomegalia é também um achado frequente em recém-nascidos de mães com DM e parece contribuir para o risco de morte fetal nestas gestações4. A relação entre o DM e os defeitos cardíacos congênitos na prole foi bem estudada, usando-se os dados do Baltimore-Washington Infant Study, entre 1981 a 1989, verificando-se uma elevação na chance de defeitos cardiovasculares no DM materno tipo 16. O reconhecimento dos riscos de teratogenicidade fetais entre gestantes diabéticas é uma justificativa suficiente para uma avaliação bioquímica adequada e o oferecimento de rastreamento de cardiopatias congênitas pela ecocardiografia fetal a todas as gestantes diabéticas1. Esta recomendação de referenciamento sistemático tem mudado a proporção de achados de anomalias cardíacas fetais associadas ao DM materno7,8.
Estudos experimentais sugerem que a hiperglicemia é um teratógeno maior na gestação complicada pelo DM, mas também outros fatores podem interferir no resultado fetal9-11. A medida da hemoglobina glicosilada e da frutosamina sérica permitem uma avaliação do controle recente dos níveis glicêmicos maternos, com importância já estabelecida na avaliação de eficácia das medidas de controle adotadas. Sabe-se também que a concentração de hemoglobina glicosilada no sangue materno, no início da gravidez, além da idade materna de início da doença estão associados às malformações congênitas11. As frutosaminas são cetoaminas formadas pela reação não-enzimática entre glicose e proteína (60 a 70% é glicosilada com a albumina sérica) associadas à gravidade e duração da hiperglicemia, refletindo diretamente a dinâmica da concentração de glicose das últimas uma a três semanas12,13. No entanto, o papel das frutosaminas como marcador de teratogenicidade da hiperglicemia tem sido pouco estudado, uma vez que a maioria dos protocolos de seguimento pré-natal tem por base para este prognóstico os níveis de hemoglobina glicosilada no início da gravidez.
O presente estudo tem por objetivo avaliar a ocorrência de achados ecográficos de cardiopatia congênita (AECC) associados aos níveis elevados de frutosamina materno, obtidos no segundo trimestre gestacional, em gestantes portadoras de DM. Possíveis valores da concentração plasmática materna de frutosamina de prognóstico, para o achado ecográfico antenatal de cardiopatias congênitas fetais, serão discutidos.
Métodos
Foi realizada avaliação retrospectiva nos atendimentos de ecocardiografia fetal do Centro de Medicina Fetal da Universidade Federal de Minas Gerais, no período de janeiro de 2000 a dezembro de 2007. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição.
Foram encontradas 91 gestantes referenciadas para o exame por apresentarem gestação complicada por DM, com registro de dosagem sérica de frutosamina realizada durante o pré-natal, em data anterior à realização da ecocardiografia fetal. Para análise de prognóstico foram selecionadas 65 gestantes cujo DM foi classificado como prévio à gestação (PGDM). Um especialista em gravidez de alto risco classificou as gestantes na primeira consulta realizada no serviço de referência, considerando como diabete melito pré-gestacional (DMPG) quando a doença já era informada no início da assistência pré-natal. Outras informações obtidas em registro de prontuário médico foram o uso de insulina, a paridade, a data e o resultado da primeira dosagem de frutosamina além da idade gestacional do referenciamento (primeira consulta no serviço). A dosagem de frutosamina plasmática foi realizada no Laboratório Central do Hospital das Clínicas da UFMG, sendo obtida pela técnica colorimétrica (kit Gold Analisa Diagnóstica Ltda). Os valores de referência considerados na análise foram: o recomendado pelo laboratório como referência para a população atendida, baseado na variabilidade de 95% da população saudável (2,68 mmol/L); aquele sugerido pelo fabricante do kit (2,9 mmol/L) e o escolhido pelo melhor equilíbrio entre a sensibilidade e a especificidade.
A ecocardiografia fetal, indicada pelo obstetra, foi realizada pelo mesmo examinador especialista em medicina fetal (APBM). Foi empregado o equipamento Sonoace 8800 ultrasound (Medison, Seoul, Korea) com sonda de 3.5 MHz. Uma avaliação detalhada da anatomia cardíaca foi realizada por um tempo médio de 40 minutos, consistindo em avaliação estrutural no modo B, Functional no modo M e hemodinâmica pela doplerfluxometria. A avaliação incluiu: determinação da posição fetal, avaliação de acúmulos de fluidos corporais sugestivos de hidropisia, identificação do situs visceral e da composição do cordão umbilical. A relação entre a circunferência cardíaca e a torácica foi determinada. Uma visão de quatro câmaras cardíacas padrão, assim como uma do sistema venoso de drenagem pulmonar; septo atrial, forame oval, morfologia e função das valvas átrio-ventriculares foram obtidas. Foi realizada uma avaliação detalhada da estrutura e da função dos ventrículos, do septo ventricular quanto a sua espessura, da movimentação e da integridade. Grandes artérias, valva semilunar, ducto e arco aórtico foram checados. A função cardíaca global foi verificada pela espessura do miocárdio. Os AECC foram considerados funcionais quando a função cardíaca estava alterada, mas nenhuma alteração estrutural foi detectada. A presença de quaisquer anomalias estruturais, com ou sem comprometimento funcional, foi considerada como um AECC estrutural. Nesse grupo, a miocardiopatia hipertrófica foi analisada individualmente.
Mães cujos fetos apresentavam exame de ecocardiografia anormal foram comparadas àquelas cujos fetos exibiram exames normais quanto aos níveis plasmáticos de frutosamina pelo test t de médias. A acuidade das concentrações plasmáticas maternas de frutosamina em identificar fetos com presença ou ausência de AECC foi avaliada pela curva ROC. Os pontos de corte selecionados para a discussão foram: o valor de referência indicado pelo laboratório central do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais, o valor sugerido pelo fabricante e o valor de melhor acurácia na análise da curva. O indicador J de Youden foi calculado para determinação do melhor ponto de equilíbrio entre a sensibilidade e especificidade: [(sensibilidade+especificidade)-1]%. O valor da sensibilidade e da especificidade, do falso-negativo e razão de verossimilhança positiva foram empregados para discussão dos três pontos de corte propostos. Empregou-se o programa SPSS, versão 15 e nível de significância de <0,005 para os testes de hipóteses.
Resultados
As características clínicas e obstétricas das 65 gestantes selecionadas, assim como o momento em que foi realizado o referenciamento para pré-natal de alto risco e a realização dos exames do estudo foram apresentados na Tabela 1. A maioria das mulheres fazia uso de insulina (64,6%), 32 (49,3%) delas tinham o diagnóstico de diabetes tipo 1, enquanto as demais eram portadoras do tipo 2 (50,78%). O tempo médio entre a primeira dosagem de frutosamina realizada no pré-natal e a realização da ecocardiografia fetal foi de cinco semanas.
O sumário dos achados do exame de ecocardiografia fetal, assim como as características maternas e ecográficas, categorizadas pela idade gestacional de inclusão no estudo, foram apresentados na Tabela 2. A primeira dosagem de frutosamina foi feita após as 20 semanas na maioria dos casos, devido à rotina de referenciamento do município. Nesse grupo, a paridade, o uso de insulina e a idade gestacional de realização da ecocardiografia foram similares àquelas avaliadas antes da 20ª semana. Entretanto, o grupo referenciado mais precocemente (<20 semanas) apresentava idade gestacional média na primeira dosagem de frutosamina mais precoce (p<0,0001) e os níveis plasmáticos mais elevados (0,0005) do que as referenciadas mais tardiamente. Apesar disto, não houve diferença entre a ocorrência de AECC entre os grupos (p=0,25).
Trinta e quarto fetos (52,3% de 65 fetos) apresentaram algum AECC. Na maioria deles, 28 fetos (82,3% de 34 fetos), foram detectadas alterações estruturais, isoladas ou associadas à alteração funcional. Os outros seis fetos (17,7%) com AECC apresentavam apenas alterações funcionais. Entre esses, a anormalidade funcional mais frequente foi o derrame pericárdico (66,7%), seguido de bradicardia (33,3%). Entre os achados de AECC estruturais, a cardiomegalia de quaisquer das câmaras cardíacas foi a anormalidade mais frequente, observada em 17 fetos (60,7%), seguida da comunicação intraventricular (39,3%). A miocardiopatia hipertrófica isolada estava presente em 14 fetos (50% das AECC estruturais).
Os níveis plasmáticos maternos da primeira dosagem de frutosamina no pré-natal variaram de 1,42 a 4,92 mmol/L. Se for considerado apenas o valor de referência recomendado pelo laboratório do serviço para a dosagem de frutosamina na gestação (2,68 mmol/L), 24 entre as 65 gestantes (36,9%) apresentavam valores anormalmente elevados. Entre essas, 83,3% gestavam fetos com AECC. Outro achado foi que nas gestantes cujos fetos apresentaram AECC foram encontrados valores médios mais elevados de frutosamina do que naquelas cuja ecocardiografia fetal não mostrou anormalidades (2,86±0,73 mmol/L, 2,22±0,54 mmol/L, respectivamente, p<0,0001).
A capacidade da concentração materna de frutosamina, dosada antes do exame ecocardiográfico fetal (20,4±8,0 semanas) para identificar fetos que apresentaram quaisquer AECC, foi significativa e pode ser avaliada na Figura 1, com área sob a curva ROC de 0,78 (IC95%=0,66-0,89; p<0,0001). Os pontos de cortes relacionados aos valores de referência maternos em uso pelo laboratório do serviço, o sugerido pelo fabricante e aquele com melhor acuidade diagnóstica foram apresentados na Tabela 3. A concentração plasmática de frutosamina de 2,23 mmol/L foi apontada como o melhor ponto de equilíbrio entre a sensibilidade e a especificidade. Valores acima deste identificam maior número de fetos com AECC em relação ao demais, pois apresenta maior sensibilidade (88,2%), mas se acompanha de 54,8% de resultados falso-positivos. O valor de 2,68 mmol/L, empregado como referência de normalidade para os níveis plasmáticos maternos, mostrou-se com elevada especificidade (87,1%) e está associado à chance 4,6 vezes de AECC em relação aos valores menores do que este ponto de corte. O valor de 2,9 mmol/L, sugerido no kit ANALISA, possui a maior especificidade (96,8%) e razão de verossimilhança positiva (13,7), mas com elevado porcentual de falso-negativo (55,9%) na identificação de fetos com AECC.
Discussão
Os resultados do estudo confirmam evidências anteriores de que a hiperglicemia, mesmo assintomática durante a gravidez, está associada à maior morbidade da prole9-11. Presente durante a embriogênese ela tem sido associada aos defeitos congênitos em gestações complicadas pelo DM e, nestes casos, o sistema cardiovascular fetal é um dos mais frequentemente afetados2,10. É orientação corrente de que a mulher portadora de DM deve planejar sua gestação para um momento euglicêmico, o que poderia reduzir o risco de doença cardíaca fetal1,13. Foi realmente desapontador reconhecer que poucas mulheres deste estudo tiveram acesso precoce ao serviço de referência e provavelmente à tal orientação. A dosagem de frutosamina antes ou após a 20ª semana de gestação não se associou a nenhum achado específico de AECC, e ambos os grupos apresentaram elevada frequência de achados ecocardiográficos. Acreditamos que esse grupo apresenta características particulares de referenciamento tardio e de gravidade do DM, pois a maioria delas fazia uso de insulina (64,6%). Tais características explicam a elevada ocorrência de AECC, presentes em 52,3% desta coorte. A realidade dos serviços de referência pôde ser evidenciada também em estudo realizado no hospital-escola de Porto Alegre (RS)14, que detectou frequência de 24,4% de fetos com anomalias cardíacas entre as 127 gestantes diabéticas, incluindo-se a forma pré-gestacional e gestacional.
Fetos nos quais foram identificadas quaisquer AECC apresentaram valores médios mais elevados de frutosamina do que nas gestantes cuja ecocardiografia fetal não mostrou anormalidades (2,86±0,73 mmol/L, 2,22±0,54 mmol/L, respectivamente). Apesar de a embriogênese cardíaca acontecer no primeiro trimestre e a primeira dosagem de frutosamina ter acontecido em média com 20,4±8,0 semanas, acredita-se que tais mulheres permaneceram com DM mal controlado, pelo menos até serem encaminhadas para o serviço de referência. Muitos estudos relatam maior chance de malformações fetais em gestantes que apresentam mau controle glicêmico no início da gestação. Entretanto, assim como estas, um substancial número de mulheres diabéticas não acessam precocemente programas de cuidados específicos1,15. Desta forma, é pouco provável ser possível acessar informações sobre os níveis glicêmicos do primeiro trimestre, sendo necessário encontrar marcadores que sejam também úteis no segundo trimestre. No presente estudo, 24 entre as 65 gestantes (36,9%) avaliadas tinham a primeira dosagem de frutosamina anormal registrada em seu prontuário e 83,3% de seus fetos apresentaram AECC.
Sabe-se também que, no período pré-concepcional e no início da gestação, os níveis glicêmicos e da concentração de hemoglobina glicosilada maternos sabidamente se associam à ocorrência de malformações fetais9. No entanto, a maioria das pacientes incluídas não apresentava esta informação registrada em prontuário.
A dosagem de frutosamina é o ensaio de proteína sérica glicosilada mais comumente usado. Uma vez que a albumina tem uma vida média de aproximadamente 14 dias, este teste representa os níveis glicêmicos médios das últimas duas a três semanas16. Se o nível de frutosamina está elevado, indica que o controle glicêmico neste período foi inadequado. A American Diabetes Association (ADA) reconhece a frutosamina como um teste útil em situações onde a glicohemoglobina não está acessível ou para ser usada associada a ela na monitorização das gestantes diabéticas17,18.
A falta de estudos a respeito da associação entre níveis de frutosamina e malformações fetais provavelmente se deve à posição já bem estabelecida da hemoglobina glicosilada avaliada no período da embriogênese. Valores de referência que quantifiquem a importância da concentração plasmática de frutosamina não foram ainda bem estudados. Ainda que a curva ROC tenha demonstrado uma significativa capacidade de concentração materna de frutosamina na identificação de fetos com AECC, possíveis pontos de corte merecem discussão e podem trazer informações relevantes. O valor de referência recomendado em nossa população (2,68 mmol/L), embora esteja associado à elevada especificidade (87,1%), mostrou baixa sensibilidade (58,8%). No entanto, uma gestante com níveis considerados elevados de frutosamina no segundo trimestre gestacional apresenta probabilidade 4,6 vezes maior de apresentar feto com AECC do que aquelas com níveis abaixo deste valor. Quando estes valores são superiores a 2,90 mmol/L, referência sugerida pelo fabricante do kit empregado, a especificidade para um achado de AECC será elevada (96,8%) assim como a probabilidade do teste alterado indicar o achado de 13,7 vezes maior, embora apenas 44,1% dos fetos comprometidos sejam identificados. No entanto, como a sensibilidade em identificar fetos com AECC deve ser suficientemente elevada para que um maior número de casos seja reconhecido no período antenatal, é sugerido também o ponto de corte matematicamente apontado de 2,23 mmol/L por apresentar maior sensibilidade entre os três propostos.
Baseado nestes achados, os níveis maternos anormais de frutosamina maternos, mesmo que no segundo trimestre gestacional, podem ser considerados marcadores de anormalidades cardíacas fetais. Gestantes com diagnóstico de DM são consideradas de alto risco para as anomalias cardíacas fetais e devem ser referenciadas para realização de ecocardiografia no segundo trimestre gestacional1, embora tal recomendação não esteja ainda bastante clara nas recomendações do último consenso nacional19. Entretanto, quando estes valores forem superiores a 2,23 mmol/L, recomenda-se que o exame de ecocardiografia seja realmente garantido à gestante e realizado em um serviço de referência para o diagnóstico, acompanhamento e abordagem pós-natal de cardiopatias congênitas.
Alterações ecográficas estruturais e funcionais nos fetos de mães diabéticas estão associadas ao mau controle glicêmico20. A miocardiopatia fetal é geralmente transitória sem consequências aparentes na maioria das crianças, mas pode responder por uma maior suscetibilidade à hipóxia e morte fetal nesta população21,22. O presente estudo aborda de uma forma global quaisquer anormalidades ecográficas e se restringe ao período antenatal, o que representa uma limitação na interpretação dos níveis circulantes maternos de frutosamina no prognóstico de anormalidades cardíacas permanentes. Estudos longitudinais e análises futuras com maior número de casos e seguimento pós-natal poderão elucidar melhor estes achados, os quais possuem limitações próprias da análise retrospectiva.
Recebido 12/1/10
Aceito com modificações 17/2/10
Trabalho realizado no Centro de Medicina Fetal da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG - Belo Horizonte (MG), Brasil.