DOI: 10.1590/S0100-72032010000100008 - volume 32 - Janeiro 2010
Lourenço Sbragia
Introdução
A presença de um defeito congênito grave é uma fatalidade pessoal e familiar que acarreta alto custo social e econômico para o país. O risco de ocorrer uma anomalia cromossômica ou uma anomalia estrutural varia entre 0,5 e 2% do total das gestações1. A grande maioria dos defeitos congênitos deve ser corrigida ao nascimento, e a indicação para intervenção fetal vai depender da idade gestacional ao diagnóstico, da presença de defeitos associados e das condições maternas. Os defeitos congênitos que são passíveis de tratamento fetal podem ser realizados de modo clássico, por cirurgia materno-fetal aberta, ou de modo minimamente invasivo, por meio de fetoscopia2.
A cirurgia fetal aberta está experimentalmente indicada na meningomielocele ou nos defeitos que ocasionam hidropsia fetal secundária, como na malformação adenomatoide cística congênita (MACC), quando ocorre compressão cardíaca, ou no teratoma sacrococcígeo (TSC), quando ocorre sangramento tumoral3-5.
A intervenção fetal minimamente invasiva está indicada na gravidez de gêmeos monozigóticos portadores de transfusão feto-fetal, nos gemelares com um dos fetos acárdicos6, na hérnia diafragmática congênita7, nas uropatias obstrutivas bilaterais e na nas cardiopatias que levam à hipoplasia das câmaras cardíacas.
O EXIT (do inglês ex-utero intrapartum treatment) é um procedimento indicado quando ocorre tumor cervical gigante. O feto é entubado na cesariana antes que o cordão umbilical seja cortado, o que assegura a permeabilidade das vias aéreas do neonato durante o parto, a fim de evitar insuficiência respiratória aguda e óbito ao nascimento8.
Cirurgia fetal aberta
O desenvolvimento da cirurgia intrauterina ocorreu no inicio da década de 1980 na Universidade da Califórnia em São Francisco (UCSF), Estados Unidos. A base dos princípios cirúrgicos ocorreu em modelos animais de grande porte, em que foi possível compreender a fisiopatologia de vários defeitos congênitos e o potencial da correção fetal. Tais princípios permitiram o aprimoramento do diagnóstico ecográfico pré-natal, a determinação da história natural do defeito, a criação de critérios de seleção para intervenção fetal, além da qualificação das técnicas anestésicas, tocolíticas e cirúrgicas que culminaram na realização da cirurgia fetal em humanos9-11.
A experiência inicial na UCSF para o tratamento da correção fetal da hérnia diafragmática congênita (HDC) utilizando histerotomia aberta permitiu concluir que a via para a correção fetal era possível, porém acarretava uma considerável morbidade materna e uma alta mortalidade fetal relacionada ao trabalho de parto prematuro12.
Dados obstétricos permitiram concluir que o risco de morte para a gestante submetida à cirurgia fetal era o mesmo que o risco de uma cesariana. Parâmetros fetais permitiram concluir que o risco era dependente do tipo de defeito congênito, e que a maior causa de óbito fetal estava relacionada à ruptura prematura das membranas amnióticas. Além disso, nenhuma gestante teve sua vida fértil comprometida após a cirurgia fetal, com índice de fertilidade de 100% para as pacientes que tentaram nova gravidez. De 45 pacientes operadas, não se evidenciou óbito materno, e 35 delas mantiveram a fertilidade e novas gestações após o procedimento inicial; as demais não desejaram nova gravidez13.
Nos Estados Unidos, o National Institute of Health (NIH) restringe a indicação de cirurgia fetal aberta em alguns centros universitários no estudo multicêntrico denominado Management of Myelomenigocele Study (MOMS) quando a gravidez está entre 20 e 25 semanas para correção da meningomielocele, ou em casos raros de massas tumorais que levam a xx hidropsia intraútero. Entre os casos de meningomielocele, a correção fetal pode levar à diminuição da hidrocefalia e à redução da necessidade de uso da válvula de derivação ventrículo-peritoneal no período neonatal, além da chance de poder ganhar algum nível funcional da lesão medular.
Nos defeitos que levam à hidropsia fetal secundária, como a MACC e o TSC, há necessidade de pesar o risco e o benefício entre a antecipação do parto que pode ocorrer próximo da prematuridade extrema (>26 a 28 semanas) e a possibilidade da intervenção fetal (<26 semanas).
Cirurgia fetal aberta para correção da meningomielocele
Disrafismo é um defeito no desenvolvimento do tubo neural, que se manifesta como uma falha na fusão completa dos arcos vertebrais da coluna espinhal, levando a um crescimento displásico da medula e das meninges. Dentre as várias formas de apresentação do disrafismo, encontra-se a espinha bífida, a meningocele e a meningomielocele (MM)14.
Essa anomalia congênita está associada a graves deficiências, incluindo deficiências motoras nos seus mais variados graus, deformidades esqueléticas, incontinência vesical e intestinal, deficiências sensitivas abaixo do nível da lesão, além de disfunção sexual. A hidrocefalia, considerada a mais grave alteração, ocorre secundariamente à malformação de Arnold-Chiari (AC), que consiste numa anomalia complexa da fossa posterior, caracterizada por herniação permanente do bulbo e do cerebelo através do forame magno passando para o canal espinal cervical.
A hidrocefalia apresenta graus variáveis de retardo neuropsicomotor, decorrentes, em parte, da gravidade das lesões que acometem a medula espinhal antes do nascimento, e, em parte, do aumento da pressão intracraniana15,16. Como consequência, os pacientes nascidos com MM apresentam longevidade média para menos de 40 anos e um considerável decréscimo na sua qualidade de vida17.
Até o presente momento, sabe-se que a correção intraútero da MM em humanos pode reverter o AC, com o potencial de limitar a progressão da hidrocefalia, reduzindo a utilização de derivações ventrículo-peritoneais (DVP) e as consequentes complicações pelo uso prolongado do cateter de DVP. No entanto, a cirurgia para correção fetal da MM, por sua peculiaridade técnica, apresenta riscos materno-fetais inerentes, tais como complicações operatórias, trabalho de parto prematuro, corioamnionite, ruptura de membranas uterinas, ruptura uterina, efeitos colaterais dos tocolíticos e necessidade de partos cesáreos para todas as gestações subsequentes18,19.
A MM resulta de um defeito no fechamento da porção posterior do tubo neural, durante a quarta semana de gestação, durante o processo de neurulação - processo que se completa por volta do 30º dia de gestação. De acordo com a hipótese "two-hit theory" proposta por Heffez et al.20,21, o evento primário que leva à exposição de elementos neurais causa um desenvolvimento defeituoso da medula espinhal, mielodisplasia, enquanto um evento secundário, determinando erosão e necrose da região exposta, leva a danos crescentes com o progredir da gestação10,20,21.
Essa hipótese é confirmada por observações de que a lesão neural adquirida durante a vida fetal é agravada por traumas mecânicos ou pela toxicidade química do líquido amniótico22. Embora o feto apresente alta capacidade de reparação tecidual, a cicatrização do defeito disráfico não ocorre in utero, só ocorrendo efetivamente após o nascimento23. É o evento secundário acima mencionado que pode ser prevenido ou até mesmo revertido por meio de uma intervenção cirúrgica fetal.
A incidência de MM é de aproximadamente 1 para cada 1.000 nascidos vivos24,25. O diagnóstico fetal é usualmente realizado por meio da ecografia ou da ressonância magnética no exame pré-natal de rotina, e a MM já pode ser identificada a partir da 16ª semana de gestação26.
A correção cirúrgica neonatal é o único tratamento disponível para os portadores de MM. No entanto, pela gravidade do defeito do tubo neural, a cirurgia não tem se mostrado eficiente no sentido de evitar as sequelas neurológicas que exigem cuidados especiais para as crianças acometidas e as grandes despesas com acompanhamento médico.
Em 1985, o cálculo dos custos no cuidado das pessoas com MM chegou a exceder 200 milhões de dólares por ano somente nos Estados Unidos27. Além disso, mesmo com o tratamento cirúrgico padrão, aproximadamente 14% dos neonatos com o defeito não sobrevivem além dos 5 anos de idade, elevando-se essa mortalidade para em torno de 35% naqueles com disfunção do tronco cerebral secundária à malformação de AC28.
Diversos modelos experimentais vêm sendo desenvolvidos para estudar a MM fetal. Inicialmente, procurou-se estudar os mecanismos de trauma que ocorrem secundariamente à exposição intraútero das meninges. As possíveis etiologias que emergiram desses estudos pioneiros incluem: injúria química provocada pelo líquido amniótico, trauma mecânico direto à medula espinhal e trauma através da pressão hidrodinâmica do líquido céfalo-raquidiano (LCR) no espaço subaracnóideo29.
Esse foi o primeiro experimento em animais de grande porte demonstrando ser factível a criação e correção intraútero de MM. Tais descobertas reforçaram a hipótese de que o meio uterino tem um papel significativo na destruição do tecido neural, e que o reparo intraútero do defeito pode permitir a preservação funcional neurológica22.
Perspectivas para o tratamento minimamente invasivo para a correção da MM vêm sendo desenvolvidas em modelos de ovelhas e podem trazer subsídios para diminuir o trauma cirúrgico da cirurgia fetal aberta30.
Embora a correção da MM fetal seja factível e mostre alguns aspectos promissores relevante ao dano medular e à diminuição do uso de DVP, os resultados ainda necessitam ser validados até que seja admitida como alternativa terapêutica cirúrgica, quando comparada à correção neonatal convencional.
Cirurgia minimamente invasiva com fetoscópio
FETO (fetoscopic tracheal occlusion) para hérnia diafragmática congênita
Hérnia diafragmática congênita (HDC) é um defeito da embriogênese diafragmática que acomete aproximadamente 1:2.500 nascidos vivos e constitui 8% das principais anomalias congênitas31.
Descrita por Bochdaleck em 1848, a HDC ocorre por um defeito do fechamento do forame posterolateral do diafragma, com a passagem de órgãos abdominais para interior do tórax. A herniação dos órgãos abdominais age como uma lesão expansiva, comprimindo o pulmão e levando à hipoplasia e ao defeito da maturação pulmonar32.
A mortalidade da HDC varia de 32 a 62%. No entanto, estima-se que aproximadamente 1 em 2.000 concepções não chegam a termo por complicações associadas e que, apesar dos recentes avanços na terapêutica da HDC e de suas complicações, a mortalidade permanece alta como decorrência da hipoplasia e hipertensão pulmonares (HP)33,34.
As possibilidades terapêuticas para a HDC consistem em tratamentos pré, peri e pós-natais e envolvem o ato cirúrgico seguido de prévio tratamento clínico, que nos casos graves podem utilizar surfactante pulmonar, ventiladores de alta frequência e oxigenação por membrana extracorpórea (ECMO) para tentar minimizar a gravidade da HP associada35.
Novas técnicas vêm sendo desenvolvidas com o intuito de promover o crescimento do pulmão intraútero e diminuir a mortalidade neonatal da HDC; dentre elas, encontra-se a oclusão da traqueia fetal (OT)36. Estudos experimentais de OT demonstraram que a incapacidade do efluxo de líquido intratraqueal fetal promovia crescimento do parênquima pulmonar fetal37 com diminuição das arteríolas pulmonares38,39. A redução da impedância ao fluxo sanguíneo observada em ovelhas com HDC sugeriu que haveria a possibilidade de reversão na hipertensão pulmonar. Dessa forma, a OT pareceu reduzir a resistência vascular, acelerando o crescimento capilar e alveolar, revertendo as alterações nos vasos pulmonares da HDC40.
A odisseia para a melhora do crescimento pulmonar se iniciou com a cirurgia fetal aberta, que demonstrou ser inviável dada a sua alta mortalidade decorrente do dobramento dos vasos do cordão umbilical. Essa situação foi identificada após o retorno do fígado, que estava posicionado inicialmente dentro do tórax para o abdome fetal. A seguir, ainda com cirurgia aberta, introduziu-se o conceito de OT com clip metálico aplicado externamente à traqueia. Essa intervenção era muito traumática para o feto e causava muitas complicações neonatais. O mesmo procedimento passou a ser feito por via laparoscópica e foi denominado FETENDO; posteriormente, a OT com clip externo foi substituída pela colocação de um balão de silicone intratraqueal.
Tanto para a retirada do clip quanto para a colocação do balão intratraqueal, foi necessária a criação de uma estratégia que consistia em realizar a cesariana com grampeadores de fios absorvíveis, retirar parcialmente o feto do útero, aproximadamente até a região epigástria, realizar a retirada cirúrgica do clip (posteriormente do balão), realizar uma entubação traqueal segura, seguido da ligadura do cordão umbilical do nascimento. Tal procedimento recebeu o nome de EXIT e tem papel fundamental na conduta de tumores cervicais gigantes que comprimem as vias aéreas41.
FETENDO foi abandonado pela alta incidência de rotura prematura de membranas, e seu insucesso foi imputado à qualidade dos instrumentos laparoscópicos, pois não havia óticas de pequeno calibre. Com o aperfeiçoamento e a qualificação dos instrumentos laparoscópicos, que ocorreu na Universidade Católica de Leuven, Bélgica, foi possível a colocação do mesmo balão com material minimamente invasivo; o procedimento foi denominado FETO (do inglês "fetoscopic tracheal occlusion")42.
A evolução do método para a OT fetal proporcionou o aprimoramento do diagnóstico ecográfico pré-natal, que quantificou o grau de hipoplasia pulmonar pela medida da relação entre a área pulmonar e a circunferência craniana, ou lung to head ratio (LHR)43, e pela posição hepática intra-torácica44. Consequentemente, fetos portadores de HDC com LHR<1,0 e fígado dentro do tórax (liver up) apresentam mínima possibilidade de sobrevivência.
A indicação de FETO, realizado entre a 26ª e a 28ª semanas e retirado com 34 semanas, é restrito ao LHR menor que 1,0, associado à presença do fígado dentro do tórax (liver up). Esses critérios aumentaram a sobrevivência dos fetos com HDC em 50%45.
Embora a indicação de FETO tenha aumentado a sobrevivência de fetos com HDC, ainda não se tornou um procedimento padrão para o tratamento do defeito. A combinação de estratégias pré e pós-natais, especialmente a qualificação da ventilação neonatal e a melhor compreensão dos mecanismos de crescimento pulmonar, poderão validar melhor o método de intervenção fetal, quando comparado ao tratamento neonatal exclusivo dos bebês com esse defeito.
Fetoscopia para transfusão feto fetal
A gravidez gemelar apresenta maior risco de morbidade e mortalidade que a gravidez única, especialmente nas monocoriônicas46. A frequência de gêmeos monozigóticos é constante ao redor do mundo e acomete aproximadamente 3,5 por gestações. Nos Estados Unidos, acomete 1 a cada 85 gestações, sendo 70% dizigóticas e 30% monozigóticas47.
Gestação monocoriônica necessita de muita atenção no diagnóstico ecográfico pré-natal, especialmente no primeiro trimestre, pelo risco de desenvolvimento da síndrome de transfusão feto fetal, ou TTTS (do inglês "twin twin transfusion syndrome")48. A TTTS afeta cerca de 10 a 15% de gêmeos monozigóticos. A rede de comunicação entre os vasos placentários, que causa alteração de fluxo sanguíneo de um feto (doador) para o outro (receptor), é a principal causa de TTTS49,50.
O feto doador se apresenta hipovolêmico, oligúrico, com graus variados de restrição de crescimento e com oligodrâmnio, enquanto o feto receptor se apresenta hipervolêmico, chegando à hidropsia, poliúrico e com polidrâmnio; portanto, o diagnóstico de TTTS é realizado pela discordância entre o volume das cavidades ao exame ecográfico pré-natal, e sua gravidade pode ser classificada em vários estágios51.
TTTS está associada a um risco maior de aborto e morte perinatal. Se não tratada, pode chegar a 90% de óbito ou ocasionar sequelas graves ao nascimento. A morbidade entre os sobreviventes incluem cardiomiopatia, insuficiência renal e sequelas neurológicas, especialmente se um dos gêmeos evoluiu para o óbito47.
O tratamento convencional para TTTS com a utilização da amniorredução agressiva tem apresentado taxas de sobrevivência muito variadas, pois os dados são na sua maioria estudos retrospectivos, com grande variação das idades gestacionais ao tratamento52. Além do mais, não é conhecido o mecanismo de como a amniorredução pode melhorar a TTTS. Contudo, é sabido que a gravidade da TTTS e a idade gestacional do diagnóstico têm profundo impacto na sobrevivência; ou seja, quanto mais precoce o diagnóstico, pior o prognóstico53.
O tratamento fetoscópico com laser, promovendo a ablação das anastomoses vasculares, é o melhor tratamento disponível54, e os resultados vêm demonstrando que há superioridade da técnica em relação à amniorredução, especialmente nos casos de diagnóstico mais precoce7.
Fetoscopia para feto gemelar acárdico
Gravidez gemelar com feto acárdico é outra rara indicação de tratamento fetoscópico com laser. Feto acárdico incide em 1 a cada 35.000 gestações e ocorre somente nos gêmeos monocoriônicos55. O feto acárdico é sempre deformado, com alterações da coluna e craniana e, especialmente a partir do primeiro trimestre, pode ocorrer o fenômeno de TRAP (do inglês "twin reversed arterial perfusion").
A sequência do TRAP pode ser explicada da seguinte maneira: o sangue desoxigenado do feto normal vai do coração para a placenta pelas artérias umbilicais, uma anastomose artério-arterial da placenta envia esse sangue pobre em oxigênio de modo retrógrado para as artérias umbilicais do feto acárdico, entrando no corpo do fetal pelas artérias hipogástricas. A completa hipo-oxigenação sanguínea continua fluindo de modo retrógrado da parte superior corporal, e retorna para a placenta pelas veias umbilicais. Uma anastomose veno-venosa placentária completa a circulação de volta para o gemelar, como se fosse uma bomba de pressão47. O diagnóstico de TRAP pode ser feito com auxilio da doplervelocimetria, sendo possível identificar a direção retrógrada do fluxo do feto acárdico56.
O tratamento pode ser realizado por radioablação do cordão umbilical fetal57 ou por fetoscopia a laser, que aumentou a sobrevivência do feto normal em 80%, com 67% das gestações chegando ao termo58.
Fetoscopia para correção de obstrução urinária fetal
A incidência de uropatia obstutiva fetal é ao redor de 1 para cada 800 gestações59. Pouco se avançou na conduta da uropatias obstrutivas fetais, especialmente as inferiores, que levam secundariamente ao comprometimento renal bilateral.
A associação de anormalidades cromossômicas às uropatias obstrutivas varia entre 8 e 23%60. A hipoplasia pulmonar e a prematuridade são as maiores causas de mortalidade na uropatia obstrutiva fetal bilateral devido ao oligodrâmnio e, às vezes, pela distensão do diafragma fetal causado pela vias nas urinárias que impede o crescimento pulmonar. A mortalidade na válvula de uretra posterior (VUP) é de 45% e, quando somada a outras causas de obstrução do trato urinário inferior, pode chegar a 95%61-63.
O diagnóstico ecográfico fetal da obstrução pode ser feito tão precocemente quanto na 16ª semana de idade gestacional e, uma vez diagnosticados a bilateralidade, o hidrâmnio e os aspectos ecográficos do parênquima renal64, pode ser indicada a punção seriada da bexiga fetal para avaliar a função renal e seu grau de comprometimento65. Diminuição da reabsorção de solutos, aumento do catabolismo proteico, aumento da perda de substâncias e o grau de hipertonicidade da urina fetal estão positivamente ligados ao grau de comprometimento histológico renal66,67.
Situações em que o diagnóstico é precoce e há mudança na ecogenicidade do parênquima renal, com piora da função da bioquímica urinária renal, são passíveis de derivação vesicoamniótica, no sentido de preservar a função renal pós-natal68.
A maior experiência de correção de fetal da VUP fetal é do Instituto para o Diagnóstico e Terapia Fetal de Tampa, na Flórida, Estados Unidos. A indicação da ablação com laser da válvula de uretra por fetoscopia está indicada nos casos precoces de perda da função renal68.
A obstrução urinária fetal continua sendo um grande desafio para os perinatologistas. As dificuldades tanto em estabelecer o diagnóstico correto quanto em saber o grau de comprometimento renal que se relacione adequadamente à função neonatal ainda precisam ser mais bem elucidados.
Atualmente está sendo desenvolvido um estudo randomizado controlado denominado Percutaneous Lower Urinary Tract Obstruction (PLUTO) , que avaliará os marcadores bioquímicos urinários fetais para correlacionar com as funções pós-natais, podendo estabelecer o real papel da derivação urinária fetal69.
Fetoscopia para dilatação valvular aórtica ou pulmonar fetal
Fetos com defeitos cardíacos que evoluem para hipoplasia de câmara cardíaca direita ou esquerda têm sobrevivência de 60% em cinco anos70. A valvuloplastia fetal pode ser indicada na doença cardíaca progressiva de mau prognóstico, como na estenose aórtica grave, na síndrome da hipoplasia cardíaca esquerda com septo atrial intacto ou restritivo, e na atresia pulmonar com septo ventricular intacto. Nesse último defeito, é teoricamente possível que a descompressão fetal com um ventrículo razoável e fístula pode resultar na sua regressão antes do nascimento, permitindo a circulação nos dois ventrículos71.
Na estenose aórtica, o objetivo do tratamento visa insuflar um balão através do anel aórtico, causando dilatação para que haja melhor ejeção do fluxo sanguínea pela válvula72. Na hipoplasia cardíaca esquerda com septo atrial intacto ou restritivo, Marshal et al. demonstraram que a criação de uma septostomia > 3 mm foi associada a uma melhor oxigenação neonatal e com menor necessidade de cirurgia de urgência, mas a intervenção fetal não aumentou a sobrevivência deste defeito73.
No Reino Unido, o National Institute for Health and Clinical Excellence (NICE) possui o guia para intervenção cardíaca fetal. O aperfeiçoamento das técnicas de punção cardíaca fetal e a qualificação permitem acreditar que a intervenção cardíaca fetal é uma fronteira nova e possui boas perspectivas para casos selecionados nas hipoplasias de câmaras cardíacas74.
Nos últimos 30 anos, o avanço na intervenção fetal tem permitido aumento na sobrevivência de portadores de várias anomalias congênitas. Muitas dessas intervenções ainda são consideradas procedimentos experimentais e há necessidade de casuísticas maiores e estudos randomizados para validar a aplicação definitiva desses novos tratamentos. Pacientes com diagnóstico pré-natal de defeitos e são passíveis de intervenção devem ser encaminhados a centros terciários de medicina fetal onde haja acompanhamento multidisciplinar com especialistas habilitados, a fim de que se possa prover o melhor tratamento a mãe e ao feto.
Recebido 2/12/09
Aceito com modificações 18/12/09
Divisão de Cirurgia Pediátrica do Departamento de Cirurgia e Anatomia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo - USP - Ribeirão Preto (SP), Brasil.