DOI: 10.1590/S0100-72032011001000004 - volume 33 - Outubro 2011
Marcio Pedroso Saciloto, Cristine Kolling Konopka, Maria Teresa de Campos Velho, Flávio Cabreira Jobim, Elaine Verena Resener, Raquel Rodrigues Muradás, Panait Kosmos Nicolaou
Introdução
Estima-se que ocorram 211 milhões de gestações anualmente no mundo e que de 14 a 19% dessas terminarão em abortamento1,2. As principais intercorrências relacionadas ao abortamento são: infecção, laceração cervical, eliminação incompleta, perfuração uterina, hemorragia e complicações anestésicas3. Elas representam uma das quatro principais causas de internação hospitalar de mulheres no Brasil e são responsáveis por 10 a 13% da mortalidade materna nos países em desenvolvimento1,4,5.
As opções terapêuticas para o abortamento com até 12 semanas gestacionais são: tratamento clínico, cirúrgico ou expectante6. Dentre as opções cirúrgicas, estão a aspiração manual intrauterina (AMIU), a aspiração a vácuo e a curetagem uterina5.
A AMIU vem sendo utilizada há mais de 30 anos em todo o mundo como uma alternativa segura e eficaz à curetagem uterina7. Esse procedimento utiliza instrumento de fácil manuseio, e sua técnica é de simples execução1,8-10. Além dessas, outras vantagens do método são: satisfação das pacientes e dos profissionais, uso de anestésicos locais em substituição à anestesia geral11, diminuição da permanência hospitalar e consequente redução de morbidade materna e dos custos hospitalares1-3,11.
Um estudo realizado com 1.769 pacientes tratadas com AMIU mostrou que a técnica foi efetiva em 99,5% dos abortamentos de até 12 semanas de idade gestacional. As complicações encontradas foram: infecção (0,7%), retenção de restos ovulares (0,5%) e perfuração uterina (0,05%)10. Resultados de um estudo de revisão, que comparou AMIU à curetagem uterina, indicaram que a AMIU é segura, mais rápida e menos dolorosa do que a curetagem9.
No Brasil, a AMIU é procedimento de rotina em alguns hospitais e clínicas privadas12,13. Entretanto, na sua grande maioria, hospitais da rede pública utilizam somente a curetagem uterina12. A literatura, sobre estudos que comparam a AMIU à curetagem no tratamento do abortamento, é escassa nos países em desenvolvimento e existem poucos dados acerca da utilização desse método no Brasil1.
Métodos
Um estudo analítico e descritivo foi realizado de modo prospectivo no Centro Obstétrico do Hospital Universitário de Santa Maria (CO-HUSM) em gestantes de até 12 semanas, com diagnóstico de abortamento incompleto. A coleta de dados foi realizada em outubro e novembro de 2009. Este trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade Federal de Santa Maria, e, para participarem do estudo, as pacientes assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido.
Os critérios de inclusão foram: diagnóstico de abortamento incompleto com até 12 semanas gestacionais completas, calculadas a partir da data da última menstruação (DUM) ou método ecográfico; presença de permeabilidade do colo uterino; espessura endometrial maior ou igual a 15 mm, avaliada ecograficamente por profissional treinado. Pacientes com suspeita clínica de moléstia trofoblástica gestacional, abortamento infectado (hemograma infeccioso e/ou temperatura axilar superior a 37,8° C e/ou secreção vaginal purulenta) e concentrações séricas de hemoglobina menores que 10 g/dL foram excluídas do trabalho.
As pacientes foram alocadas, alternada e consecutivamente, em dois grupos: curetagem uterina e AMIU. Foram selecionadas 15 mulheres para cada grupo, perfazendo um total de 30 pacientes estudadas.
Foram coletadas amostras de sangue na admissão e imediatamente após o término do procedimento para avaliação de dados hematimétricos (hematócrito e hemoglobina). O tempo despendido para a execução do procedimento assim como o tempo pré- (da admissão ao início do procedimento) e pós-procedimento (do término do procedimento à alta hospitalar) foram anotados no protocolo de cada paciente.
As pacientes submetidas à curetagem uterina realizaram o procedimento sob narcose ou bloqueio raquidiano. Foram utilizadas: pinça de Winter e curetas romba e fenestrada para realizá-lo. Após o término, as pacientes foram mantidas em observação clínica na sala de recuperação do bloco cirúrgico até a alta anestésica. No caso da AMIU, as pacientes receberam administração de analgésicos por via endovenosa com petidina (2 a 5 mL de solução decimal, contendo 100 mg) (Petinan®, Biochimico, BR) e infiltração anestésica paracervical com xilocaína (10 a 20 mL a 1%, sem vasoconstritor) (Xylestesin®, Cristália, BR). Foram utilizadas cânula flexíveis de 6 a 8 mm para retirada do material. Após o término do procedimento, as pacientes foram mantidas em observação clínica no Centro Obstétrico, no qual receberam alta hospitalar. Em ambos os grupos foi avaliada a histerometria antes de se iniciar o esvaziamento uterino. As pacientes receberam retorno ambulatorial de 10 a 14 dias para reavaliação clínica.
As variáveis do trabalho foram submetidas à análise estatística descritiva por meio do teste de Kruskal-Wallis, utilizando o Programa SPSS, versão 15.0. Foi considerado significante p<0,05.
Resultados
Trinta pacientes com diagnóstico de abortamento incompleto, atendidas no Centro Obstétrico do HUSM, foram selecionadas, conforme os critérios de inclusão e exclusão.
A Tabela 1 apresenta as variáveis relativas aos grupos estudados, segundo suas médias, desvio padrão e nível significância estatística. A média de idade materna para o Grupo Curetagem Uterina e AMIU foi, respectivamente, 29,4 e 28,3 anos. A média de idade gestacional foi de 66,3 dias para o Grupo Curetagem e de 67,0 para o AMIU. A média da espessura endometrial foi de 19,1 mm, no Grupo Curetagem, e de 21,6 mm, no Grupo AMIU. Não houve diferença estatisticamente significativa entre as variáveis, o que reflete a homogeneidade da amostra. Já a média das histerometrias obtidas antes do esvaziamento uterino revela uma diferença estatisticamente significativa entre os grupos, 9,9 cm para o Grupo Curetagem e 8,7 cm para o Grupo AMIU (p=0,02).
A Tabela 2 mostra uma análise comparativa entre os grupos em relação aos tempos decorridos no período pré-procedimento, o tempo de execução do procedimento, o tempo pós-procedimento e o tempo total de permanência hospitalar, respectivamente, de cada paciente dos grupos estudados.
O tempo médio pré-procedimento foi de 12,4 horas no Grupo Curetagem e de 8,0 horas no Grupo AMIU. A média dos tempos de execução dos procedimentos foi de 15,7 minutos no Grupo Curetagem e de 12,7 minutos no Grupo AMIU. Não houve diferença significativa entre os grupos em ambos os tempos (p>0,05).
A média dos tempos de pós-procedimento no Grupo Curetagem foi de 5,4 horas e de 2,5 horas no Grupo AMIU. O tempo de permanência hospitalar total médio foi de 18,0 horas nas pacientes do Grupo Curetagem e de 10,7 horas nas pacientes do Grupo AMIU. Ambos os tempos mostraram médias com diferença significativa e foram menores no Grupo AMIU (p=0,01 e p=0,03, respectivamente).
Os valores de hematócrito e hemoglobina foram verificados antes e após o procedimento nos grupos estudados (Tabela 3). A média de hemoglobina nas pacientes submetidas à curetagem uterina foi de 14,2 e 11,7 g/dL, enquanto o hematócrito foi 38,1 e 34,0%, respectivamente. No Grupo AMIU, a hemoglobina média foi de 13,4 e 11,3 g/dL e o hematócrito, 36,0 e 32,7%, respectivamente.
Ambos os grupos tiveram igual eficácia no esvaziamento uterino, não havendo necessidade de novo procedimento cirúrgico em nenhum caso. Não foi registrada nenhuma complicação tanto no Grupo Curetagem Uterina como no Grupo AMIU. No acompanhamento pós-operatório de até 14 dias, não foram encontrados registros de febre, dor abdominal ou hemorragia genital.
Discussão
O HUSM, de forma semelhante à maioria dos hospitais públicos do Brasil, oferece a curetagem uterina sob narcose ou bloqueio raquidiano como principal forma de tratamento para o abortamento incompleto antes das 13 semanas gestacionais.
O esvaziamento uterino realizado por meio de AMIU tem a vantagem da substituição da anestesia geral ou raquidiana por analgesia, associada, ou não, ao bloqueio paracervical, resultando em menor permanência hospitalar e precocidade da alta, o que contribui para a redução dos custos hospitalares3,14-16. Considerando que os riscos inerentes aos procedimentos cirúrgicos e anestésicos, bem como a exposição das pacientes à infecção pela maior permanência hospitalar, podem contribuir para o aumento da morbimortalidade materna1,17, a AMIU tem sido apresentada por muitos autores como alternativa terapêutica no tratamento do abortamento14,16.
Por não requerer a presença de anestesiologista, a AMIU destina-se também a serviços médicos de menor complexidade ou com limitação de recursos como forma de melhorar os resultados e diminuir os riscos para as pacientes5-9. Em determinadas situações, a AMIU já é considerada a técnica de eleição e recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pela Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (FIGO) no tratamento do abortamento infectado18.
A AMIU está associada a um baixo número de complicações (perfuração uterina, laceração do colo, hemorragia genital), com resultados semelhantes à curetagem quanto à segurança e eficácia13,14,19. Westfall et al.17, ao realizarem AMIU para tratamento de abortamentos de primeiro trimestre de gestação, demonstraram eficácia de 99,5% e ausência de complicações, quando realizada até a décima semana. Mais recentemente, Pereira et al. também encontraram 100% de eficácia e nenhuma complicação em 50 pacientes tratadas com AMIU nos casos de abortamento do primeiro trimestre20.
Neste estudo não houve necessidade de novo procedimento cirúrgico para esvaziamento uterino nas pacientes tratadas com AMIU. Além de 100% eficaz, mostrou-se um método seguro, pois não houve registro de complicações transoperatórias (laceração cervical, perfuração uterina e hemorragia) ou pós-operatórias (ao final do 14º dia pós-operatório, nenhum episódio de febre, dor abdominal ou hemorragia foi verificado).
Quanto à permanência hospitalar, na década de 1990, estudos apontavam para a redução do tempo de internação quando se utilizava a AMIU como técnica de tratamento. Fonseca et al.21 constataram redução de 77% no tempo total de hospitalização. Menor tempo de hospitalização traduz melhoria de atendimento nos mais variados aspectos. Indiscutivelmente, é um marcador direto de redução de custos para os onerados recursos destinados à saúde4, além de representarem maior grau de satisfação das pacientes e menor exposição ao ambiente hospitalar9.
Em concordância com a literatura mundial, este estudo demonstrou menor permanência hospitalar das pacientes tratadas com AMIU em relação às submetidas à curetagem uterina. A diferença foi, em especial, às custas do tempo pré-procedimento. Esse fato explica-se por não requerer, para sua realização, anestesiologista e Centro Cirúrgico disponíveis. No Grupo AMIU, 20% das pacientes (3 de 15) permaneceram menos de três horas nas dependências do hospital. Em média, as pacientes do Grupo AMIU permaneceram 7,3 horas a menos que as pacientes que realizaram curetagem.
As perdas sanguíneas refletem de maneira objetiva a qualidade do atendimento, especialmente quando este se faz de maneira ágil e eficiente. A técnica da AMIU mostra menor variação dos parâmetros hematimétricos, conforme Pereira et al., os quais constataram diferença significativa entre os Grupos AMIU e Curetagem Uterina3,20.
Neste estudo, a análise mostrou não haver diferença estatisticamente significativa nas perdas sanguíneas. Porém, foi menor nas pacientes tratadas com AMIU, provavelmente em função da agilidade no tratamento das pacientes. Portanto, na população estudada, a AMIU mostrou ser uma alternativa segura e eficaz à curetagem uterina, que deve ser considerada rotineiramente no tratamento do abortamento incompleto até 12 semanas gestacionais.
Recebido: 25/03/2011
Aceito com modificações: 24/10/2011
Serviço de Obstetrícia do Hospital Universitário de Santa Maria - Santa Maria (RS), Brasil.