DOI: 10.1590/S0100-72032011000200006 - volume 33 - Fevereiro 2011
Eliener de Souza Fazio, Roseli Mieko Yamamoto Nomura, Maria Carolina Gonçalves Dias, Marcelo Zugaib
Introdução
As alterações nutricionais e metabólicas que ocorrem durante a gestação visam proporcionar ambiente favorável para o desenvolvimento normal do concepto. Essas modificações fisiológicas promovem alterações no organismo materno preparando-o para a maternidade. O conhecimento da fisiologia do estado gravídico é fundamental para a melhor condução do atendimento pré-natal.
O período gestacional é heterogêneo em seus aspectos fisiológicos, metabólicos e nutricionais. No primeiro trimestre, a saúde do embrião vai depender da condição nutricional pré-gestacional da mãe, não somente quanto às suas reservas de energia, mas também quanto às de vitaminas, minerais e oligoelementos. O segundo e terceiro trimestres integram outra etapa para a gestante, em que as condições ambientais vão exercer influência direta no estado nutricional do feto1-3.
As gestantes são suscetíveis à inadequação nutricional, pelo aumento da demanda de energia, macro e micronutrientes, que ocorrem durante a gravidez, a fim de se garantir a saúde materno-fetal4,5. A qualidade da alimentação e o estado nutricional antropométrico da mulher, antes e durante a gravidez, afetam o crescimento e o desenvolvimento fetal, bem como a evolução da gestação.
Tem sido observado na nossa população, pela análise do consumo dietético, desequilíbrio na ingestão de nutrientes6,7. Durante a gestação, esse desequilíbrio pode implicar no comprometimento do crescimento e desenvolvimento do concepto, bem como no ganho de peso na gravidez, tornando de grande interesse o estudo da evolução ponderal da gestante e dos fatores relacionados8-12.
Esta pesquisa teve como objetivo conhecer o consumo dietético de gestantes atendidas em hospital universitário, avaliando a ingestão de macronutrientes e micronutrientes, e verificar o ganho ponderal materno na gravidez de acordo com o estado nutricional antropométrico.
Métodos
Este trabalho foi realizado em hospital universitário e abrangeu o período compreendido entre junho de 2002 e junho de 2008. A pesquisa teve seu projeto apresentado e aprovado pela Comissão de Ética em Pesquisa da instituição, sob número 0917/08.
Foi realizada pesquisa retrospectiva das informações de gestantes encaminhadas para a equipe de nutrição e dietética de acordo com a rotina assistencial estabelecida na instituição. As gestantes de baixo peso, sobrepeso ou obesas foram encaminhadas pelos ambulatórios de pré-natal de baixo, médio e alto risco para orientação da qualidade da alimentação, bem como acompanhamento do ganho de peso materno; as gestantes eutróficas foram encaminhadas por sinais ou sintomas relacionados à alimentação, informados pela paciente ao médico durante a consulta de pré-natal ou por livre demanda.
Foram utilizados os seguintes critérios de inclusão: gestantes com idade maior ou igual a 18 anos completos; ausência de diagnóstico prévio de doença materna; gestação única; ausência de malformação ou anomalia fetal; orientação iniciada pela equipe de nutrição até a 30ª semana de gestação; pré-natal e parto realizados na instituição.
Os dados foram coletados retrospectivamente por meio de consulta às fichas de evolução dietoterápica, padronizadas pela equipe de nutrição e dietética, e pela consulta de prontuários das pacientes. Na entrevista inicial realizada pela nutricionista, foram obtidas informações gerais da paciente, bem como peso e altura. O peso pré-gestacional foi informado pela paciente, ou, na ausência desta informação, foi utilizado o peso obtido na primeira consulta de pré-natal realizada até a 12ª semana de gestação. Para classificação do estado nutricional antropométrico pré-gestacional, foi utilizada a classificação proposta pelo Instituto de Medicina (IOM) da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos13. Segundo esta classificação, considerou-se que mulheres com IMC pré-gestacional menor de 19,8 kg/m2 eram de baixo peso; eutróficas, com IMC de 19,8 a 26,0 kg/m2; sobrepeso, com IMC entre 26 a 29 kg/m2; e obesas, com IMC acima de 29 kg/m2. O ganho ponderal materno foi analisado segundo o estado nutricional antropométrico pré-gestacional pela classificação do IOM, que, para as gestantes de baixo peso, eutrofia, sobrepeso e obesidade, recomenda, respectivamente, ganho total de 12,5 a 18 kg, de 11,5 a 16 kg, de 7 a 11,5 kg, e de 7,0 a 9,1 kg.
Para avaliação do consumo dietético foram analisados os dados da entrevista de frequência alimentar, realizada na primeira avaliação da gestante no serviço de nutrição, antes de ser oferecida a orientação específica. Trata-se de questionário de frequência alimentar padronizado e adotado no Serviço de Nutrição e Dietética da instituição, que inclui questões sobre qualidade e quantidade dos alimentos, nos seguintes momentos: café da manhã (31 itens), lanche da manhã (6 itens), almoço (36 itens), lanche da tarde (6 itens), jantar (36 itens) e lanche noturno (6 itens). As informações dos alimentos e/ou preparações indicados em medidas caseiras pelas gestantes foram convertidos em gramas por meio da tabela para avaliação de consumo alimentar em medidas caseiras. Os dados sobre os alimentos consumidos (em gramas) na dieta foram analisados pela sua composição nutricional, utilizando-se tabelas de composição química de alimentos, que formam o software Nutwin (CIS EPM versão 2.5 nº 2380). Para os alimentos e/ou preparações que não constavam no banco de dados do Nutwin, foram considerados os valores da composição nutricional da Tabela Brasileira de Composição de Alimentos (TACO) e de tabelas de composição nutricional de rótulos dos alimentos.
As recomendações dos macronutrientes foram avaliadas de acordo com os valores determinados pela Organização Mundial da Saúde (2003)14. Foram analisados os macronutrientes (carboidratos, proteínas e lípides) e os micronutrientes: cálcio, ferro, ácido fólico, vitaminas A e C, além das fibras. Estes valores serão analisados de acordo com as recomendações da Ingestão Dietética de Referência (DRI)15-17, para gestantes.
O ganho ponderal total foi calculado pela diferença entre o peso materno no dia do parto e o peso pré-gestacional. A idade gestacional foi calculada a partir da data da última menstruação (DUM), quando era compatível com a idade gestacional estimada pela ultrassonografia realizada, no máximo, até a vigésima semana de gestação. Nos casos em que não foi observada tal concordância, a idade gestacional foi calculada pelos dados da primeira ultrassonografia.
Os resultados foram analisados através do programa Statistica for Windows (versão 4.3, Statsoft®, Inc., 1993). As variáveis foram analisadas descritivamente, calculando-se frequências absolutas e relativas. Para as variáveis quantitativas, esta análise foi feita pela observação dos valores mínimos, máximos, cálculo de médias e desvios padrão. Para comparação entre proporções foi aplicado o teste do χ2, e, quando pertinente o Teste Exato de Fisher. Foi utilizado o teste ANOVA para a comparação das médias entre os grupos, nas variáveis com distribuição normal, e o Teste de Kruskal-Wallis para as variáveis de distribuição não normal. Para identificação da significância dos grupos estudados, foi aplicado o Teste de Tukey. Foi adotado como nível de significância o valor 0,05 (alfa=5%). Com isso, níveis descritivos (p) inferiores a esse valor serão considerados significantes (p<0,05).
Resultados
Foram avaliadas 187 gestantes, com média de idade de 30,6 anos e desvio padrão de 6,2 anos. A média da idade gestacional na primeira avaliação nutricional foi de 21 semanas, com desvio padrão de 7 semanas. Setenta e cinco (40,1%) gestantes eram nulíparas, 56 (30,0%) eram primíparas, e 56 (30,0%) apresentavam paridade superior a um. Do total de prontuários inicialmente selecionados, foram excluídos 64 casos de diagnóstico prévio de doença materna, 41 casos que foram referenciadas ao serviço de nutrição após a 30ª semana, 27 casos de gestantes adolescentes, 18 casos que perderam o seguimento ou cujo parto foi realizado em outra instituição, cinco casos com diagnóstico de malformação fetal, e três casos de gestação gemelar, restando 187 casos para a presente investigação.
Das gestantes que receberam orientação nutricional incluídas, 23 (12,2%) eram de baixo peso, 84 (45,0%), eutróficas, 37 (19,8%) com sobrepeso, e 43 (23,0%), obesas. As gestantes classificadas como de baixo peso apresentaram média de idade inferior à observada nos demais grupos (Tabela 1). Quanto à idade gestacional em que receberam inicialmente a orientação dietética pela equipe de nutrição, verificou-se que o grupo de gestantes eutróficas iniciou mais tardiamente, com média de idade gestacional superior aos demais grupos.
A avaliação do consumo dietético de macronutrientes está demonstrada na Tabela 1. Não se verifica diferença nas médias da quantidade diária de energia, nos diferentes grupos classificados pelo IMC pré-gestacional. Quanto ao perfil de macronutrientes, foi observada diferença significativa na média de ingestão de lípides: as gestantes de baixo peso apresentaram menor consumo de lípides quando comparadas ao grupo com eutrofia (101,4 versus 137,3 g; p=0,043). Quanto à proporção de distribuição dos macronutrientes, não foi verificada diferença significativa entre os grupos analisados.
O consumo dietético quanto à ingestão de micronutrientes está apresentado na Tabela 2. A ingestão diária de cálcio, vitamina A e vitamina C foi semelhante entre os grupos. Quanto à ingestão de ferro, a quantidade ingerida, por dia, foi maior nas gestantes eutróficas quando comparadas às com sobrepeso e com obesidade (p<0,001). A média diária de ingestão de folatos foi maior nas gestantes eutróficas quando comparadas às obesas (p=0,002). Na avaliação da ingestão de fibras, observou-se que os resultados indicam menor ingestão nas gestantes baixo peso quando comparadas às eutróficas (p=0,042).
Quanto ao ganho ponderal materno, foi observada média significativamente menor (p<0,001) nas obesas (média=8,4 kg, DP=6,4kg) quando comparadas aos demais grupos: baixo peso (média=12,5 kg, DP=5,0 kg), eutrofia (média=13,1 kg, DP=5,2 kg), e sobrepeso (média=12,4 kg, DP=5,8 kg). Na análise em relação ao ganho ponderal total recomendado, verificou-se que o ganho ponderal materno total foi excessivo (acima do recomendado) em proporção significativamente maior (p=0,009) nas gestantes com sobrepeso e obesidade, quando comparadas às com baixo peso e eutrofia (Tabela 3).
Discussão
A avaliação do consumo dietético de gestantes, bem como o conhecimento do ganho ponderal materno, têm como objetivo trazer subsídios para o desenvolvimento de planos de ações eficazes no controle da qualidade da alimentação e no adequado ganho de peso, nesta fase da vida. A literatura demonstra que os extremos do estado nutricional antropométrico podem trazer riscos adicionais à gestação18-21. Conhecer os detalhes do consumo dietético aprimora a qualidade do atendimento e das orientações fornecidas. Aspectos das recomendações nutricionais podem ser essenciais para fortalecer o planejamento e desenvolvimento saudável da gravidez, minimizando riscos de comprometimento materno e perinatal.
O presente estudo verificou que a proporção de carboidratos no consumo dietético das gestantes variou de 55 a 59%, conforme o estado nutricional antropométrico. Essa proporção deve sofrer influência dos hábitos alimentares de diferentes populações, pois em levantamento realizado na Inglaterra22, o consumo de carboidratos é de 223 g/d, que representa 50% do valor calórico total. Segundo estudo realizado no Rio de Janeiro23 o consumo médio de carboidratos é de 496 g/d, representando 65% do total energético, proporções estas diferentes das avaliadas neste estudo. O metabolismo dos carboidratos é importante determinante do crescimento fetal, fator este que pode contribuir para resultados perinatais adversos.
Quanto ao consumo proteico das gestantes, este estudo constatou média, em gramas, superior à observada em estudo de coorte prospectivo realizado na Inglaterra22, que foi de 67 g/dia. Além disso, a média de ingestão protéica nos grupos com eutrofia, sobrepeso e obesidade foi maior que o observado em estudo realizado na Nova Zelândia24, onde a média foi de 78 g/dia. Apesar de existirem diferenças socioeconômicas entre a população do presente estudo e as dos estudos internacionais citados, diferenças no método podem ter contribuído para as diferenças apontadas. Além disso, hábitos alimentares podem diferir com a diversidade cultural, o que pode influenciar nos resultados observados.
A ingestão de lípides, em todos os estados nutricionais antropométricos, demonstrou proporção média adequada quando comparada à ingestão energética total. Distribuição similar de lípides foi encontrada em estudo realizado no Japão25, onde a média de ingestão diária foi de 29% da recomendação energética total, porém Lof et al. (2009)26 encontraram média de 82 g, abaixo da quantidade encontrada no presente estudo. Apesar da proporção dos lípides em relação às calorias totais estarem dentro do padrão recomendado, sabe-se que, de maneira geral, a população brasileira tem como predominância de fonte lipídica as gorduras saturadas e trans, gorduras essas que são prejudiciais ao sistema cardiovascular. Nesse sentido, são necessários estudos específicos sobre o consumo de lípides na gestação, para que sejam conhecidos detalhes dos hábitos das gestantes do nosso meio, bem como desenvolvimento de estratégias para que a alimentação saudável possa ser estimulada.
Entre os micronutrientes analisados, o cálcio, o ferro, o folato e as fibras foram os que apresentaram menor ingestão em comparação às recomendações adotadas. A média encontrada de ingestão de cálcio esteve, em todos os estados nutricionais, abaixo da recomendada. As gestantes de baixo peso, seguidas pelas obesas, foram as que apresentaram ingestão média mais baixa, reforçando a necessidade de atenção nos extremos do estado nutricional. Freisling et al. (2006)27 verificaram ingestão diária de cálcio em gestantes e encontraram médias de 865 mg/d, 950 mg/d e 1055 mg/d, de acordo com o nível de escolaridade baixo, médio e alto, respectivamente. Estes valores são mais elevados que os observados na presente casuística, o que demonstra haver diferenças na qualidade da alimentação. Em estudo realizado em Londres28, é constatado consumo médio de cálcio de 883 mg/d, também abaixo da recomendação, mas semelhante ao observado no presente estudo.
Quanto ao aporte de ferro no consumo dietético das gestantes do presente estudo, verificou-se que a média de ingestão diária está aquém das recomendações. Somente pela alimentação é difícil se atingir a quantidade recomendada, portanto, a partir do segundo trimestre, é imprescindível a suplementação vitamínica com compostos de ferro, além do incentivo à inclusão de alimentos fontes deste mineral, como carnes e vegetais de cor verde-escura.
A média de consumo de fibras dietéticas não atingiu a recomendação nos grupos analisados, sendo mais baixa nas gestantes de baixo peso. Este aspecto reflete, em parte, os hábitos de grande parte da população urbana brasileira com baixa ingestão de alimentos fonte de fibras, como frutas, legumes e verduras. Buss et al. (2008)29, observaram, em gestantes, consumo médio de fibras de 30,2 g/d, porém 50,2% da amostra não atinge a recomendação.
Em estudo com grávidas de uma região urbana do Irã21, mulheres com baixo peso pré-gestacional demonstram risco para ganho ponderal insuficiente na gravidez, e, nas gestantes obesas, o ganho ponderal excessivo é observado em 47,9%, proporção comparável ao presente estudo.
A limitação deste trabalho é o caráter retrospectivo, o que dificulta a análise do impacto da orientação nutricional oferecida como medida de intervenção. Além disso, o valor energético médio obtido nesta casuística é inferior ao observado na prática, o que pode significar certa impropriedade na análise dos questionários quanto a este parâmetro. Apesar de a entrevista ter sido realizada, em média, na metade da gravidez, acredita-se que não haja grande variação nos hábitos alimentares ao longo da gravidez. Na presente investigação, o ganho de peso excessivo, acima do recomendado, mais frequente nas gestantes com sobrepeso e obesidade, reflete o desafio em se obter sucesso na orientação dietética. Novas estratégias devem ser delineadas, bem como a captação precoce dessas mulheres para melhor orientação nutricional e conscientização da importância do ganho de peso na gravidez.
O conhecimento do consumo dietético da gestante brasileira é de grande relevância, bem como o seu estado nutricional pré-gestacional. A orientação dietética procura direcionar os hábitos alimentares para adequar a oferta de energia, macro e micronutrientes. No presente estudo, apesar da orientação nutricional oferecida, o excesso no ganho ponderal materno total associou-se ao sobrepeso e à obesidade, o que remete à reflexão sobre a real aderência dessas gestantes ao que é recomendado, bem como à forma com que essas orientações são transmitidas. O consumo dietético de gestantes acompanhadas em hospital universitário difere de acordo com o estado nutricional antropométrico pré-gestacional. As gestantes com sobrepeso e obesidade apresentam menor ingestão diária de ferro quando comparadas às eutróficas, e as obesas, menor ingestão de folatos. Isso reforça a importância da suplementação vitamínica pré-natal.
Recebido 17/08/2010
Aceito com modificações 22/02/2011
Disciplina de Obstetrícia do Departamento de Obstetrícia e Ginecologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - USP - São Paulo (SP), Brasil; Divisão de Nutrição e Dietética do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo São Paulo - USP - São Paulo (SP), Brasil.