DOI: 10.1590/S0100-72032011000300004 - volume 33 - Março 2011
Fabia Lima Vilarino, Bianca Bianco, Ana Carolina Melo Martins, Denise Maria Christofolini, Caio Parente Barbosa
Introdução
A endometriose é uma doença caracterizada pela presença de tecido endometrial com glândulas e estroma fora da cavidade uterina e localiza-se mais frequentemente na pelve, como, por exemplo, ovários, tubas, ligamentos uterinos, septo retovaginal e peritônio1. Raramente, os implantes endometrióticos podem ser encontrados em locais mais distantes como no intestino, nos sacos herniários, na bexiga, nos rins, nos ureteres, na vulva, na vagina, no umbigo, nos pulmões e nas cicatrizes cirúrgicas1.
Os implantes endometrióticos extrapélvicos podem surgir em tecido celular subcutâneo de cicatrizes cirúrgicas e nos tecidos adjacentes, em geral, após procedimentos ginecológicos e obstétricos com a manipulação do útero, como partos normais, cesáreas, histerectomias, gestações ectópicas e laqueaduras puerperais1-4.
A endometriose em cicatriz cirúrgica tem incidência relatada entre 0,03 e 3,5%5-7, e sua etiopatogênia pode ser justificada pela combinação de duas teorias: disseminação linfática e metaplasia celômica7,8. O endometrioma se manifesta, geralmente, como uma nodulação com localização próxima à cicatriz cirúrgica associada à dor agravada durante o período menstrual. O diagnóstico pode ser feito por meio da anamnese e do exame físico somente ou, em alguns casos, complementado pela ultrassonografia. O tratamento é sempre cirúrgico, com a confirmação do diagnóstico pelo exame anatomopatológico. O conhecimento do quadro clínico típico e de suas possíveis variações facilita a identificação da doença e a indicação do tratamento adequado.
Baseada na baixa incidência e nos poucos relatos da literatura, o presente estudo teve por objetivo identificar a incidência de endometriomas em cicatriz cirúrgica e correlacioná-la com as diferentes informações clínicas.
Métodos
Foi realizado um estudo retrospectivo descritivo a partir da revisão dos prontuários de pacientes que foram submetidas à ressecção de nódulos em cicatriz cirúrgica, no serviço de ginecologia do Hospital Municipal de São Bernardo do Campo (HMU-SBC) da Faculdade de Medicina do ABC, de novembro de 1990 a setembro de 2003.
Os dados considerados foram: idade, paridade, número de cesáreas, antecedentes cirúrgicos, tempo da última cesárea ou da última cirurgia, tempo de aparecimento e as características dos sintomas, localização do implante, como foi feito o diagnóstico clínico e se houve recidiva após a exérese. Os dados encontrados foram descritos em números absolutos e incidência e comparados com outros estudos da literatura.
A idade das pacientes variou de 20 a 45 anos, com média de 32,4±6,2 anos. Das 44 pacientes operadas com suspeita de endometriose de cicatriz, 42 foram incluídas porque o diagnóstico anatomopatológico ressecado cirurgicamente confirmou a suspeita. Houve a identificação de glândulas e estroma endometriais no tecido analisado. Duas foram excluídas, pois foram operadas por cirurgiões gerais que suspeitaram de granuloma incisional e não enviaram o material para análise anatomopatológica.
A análise estatística foi realizada com uso de porcentagem, média aritmética e desvio padrão.
O projeto foi aprovado pela Comissão de Ética Médica e Pesquisa da Faculdade de Medicina do ABC. Por se tratar de uma revisão de prontuários, dispensou-se o termo de consentimento livre e informado.
Resultados
Foram encontrados 42 casos de nódulos de endometriose extragenital, sendo 37 de endometriose em cicatriz de cesárea, 3 em episiotomia médio lateral direita e 2 em ápice vesical aderido à cicatriz de histerorrafia.
Quanto aos antecedentes cirúrgico-obstétricos, 92,9% pacientes haviam sido submetidas ao parto cesárea e 7,1%, ao parto vaginal. Quanto ao número de cesáreas, 51,2% das pacientes tinham apenas uma cesárea anterior; 35,9%, duas cesáreas; e 12,8%, três cesáreas. Nenhuma paciente tinha qualquer outro antecedente cirúrgico.
No período estudado, foram realizados 16.155 partos por via abdominal e 29.123, por via vaginal no HMU-SBC. Com esses dados foi possível inferir a incidência de 0,09% de endometriose incisional, 0,23% de endometriose em cicatriz de cesárea e 0,01% de endometriose em cicatriz de parto normal. As pacientes estudadas tiveram a resolução da gravidez no serviço.
O intervalo médio entre o parto e o aparecimento dos sintomas foi de 2,7±3,7 anos, variou de seis meses a oito anos, e cerca de 59,5% em menos de quatro anos. Cinco pacientes referiram que o sintoma surgiu logo após a última cesárea.
Os sintomas principais foram: dor (37,5%), nodulação (17,5%) ou ambos (45%), os quais pioravam durante a menstruação. Apenas quatro pacientes (9,5%) não relacionaram o sintoma com o ciclo menstrual. Nos casos de endometrioma vesical, os sintomas eram de hematúria e dor em hipogastro no período menstrual.
Foram encontrados endometriomas nas cicatrizes de Pfannenstiel em 76,2% dos casos; na cicatriz longitudinal, em 11,9%; na episiotomia, em 7,2% e no peritônio visceral da bexiga fixo na histerorrafia, em 4,8%.
A análise da hipótese diagnóstica foi feita considerando-se os achados obtidos na anamnese e no exame físico, e foi confirmada pelo resultado do exame anatomopatológico após a exérese do nódulo.
Em 24 casos (57%), o estudo ultrassonográfico da parede abdominal foi utilizado para auxiliar no planejamento cirúrgico, informando o tamanho e a profundidade da lesão; em 16 (38%), apenas o exame clínico foi suficiente e não houve necessidade de outra avaliação; nos casos de endometriose vesical, a ultrassonografia foi o único método para diagnóstico já que a clínica de hematúria era inespecífica.
Os 42 casos foram tratados com a ressecção completa do endometrioma e tiveram o diagnóstico confirmado histologicamente. Não foi realizado nenhum tratamento pré ou pós-cirúrgico.
Todas as pacientes operadas foram acompanhadas por no mínimo dois anos e houve recidiva em 4,7% (2/42). Em uma das pacientes, o nódulo apareceu seis meses depois da exérese e em outra, dois anos depois. Ambas as pacientes foram tratadas novamente com novo procedimento cirúrgico e não tiveram nova recidiva no seguimento de dois anos.
Discussão
A endometriose extrapélvica é rara e refere-se a implantes endometriais em locais não-convencionais como: trato urinário; gastrointestinal; pulmões e pleura; sistema musculoesquelético; sistema nervoso central; aparelho genital extraperitoneal como vagina, colo uterino e vulva; e parede abdominal1,8-11. Os endometriomas em cicatriz cirúrgica ocorreram entre 0,03 e 3,5% dos casos operados1, reforçando os achados do presente estudo, que encontrou uma frequência de 0,09%. Estudos relatam casos de endometriomas também em incisões de trocater de laparoscopia12,13 após cirurgias tubárias 8. Apesar do grande número de cirurgias laparoscópicas do nosso serviço, mais de 800 em 2003, nenhum caso foi observado.
Alguns autores questionam a técnica cirúrgica, sugerindo que o não-fechamento do peritônio visceral e parietal na cesariana poderia contribuir para o aumento do número de casos de endometriose incisional14.
Os casos de endometriose em episiotomia têm incidência ainda menor, relatada entre 0,0115 a 0,06%6. Acredita-se que ocorra por implantação de células deciduais da loquiação do parto normal na cicatriz16. Neste estudo, a incidência foi menor após o parto vaginal (0,01%) comparado à cesárea (0,23%).
A endometriose afeta mulheres em idade reprodutiva e mais frequentemente multíparas entre 25 e 35 anos7. No presente estudo, a média de idade foi de 32,4 anos em pacientes com histórico de cirurgia obstétrica anterior, resultado semelhante ao estudo10 que encontrou, em sua série de 40 pacientes, a média de idade de 32,3 anos.
No presente estudo, todos os casos tinham parto como único antecedente e nenhuma paciente apresentou endometrioma após histerectomia, apendicectomia ou laparoscopia como descrito na literatura3,4,6,8,10,12,17,18.
A maioria das pacientes desenvolveu a lesão após a cesárea (92,8%), também em concordância com a literatura que relaciona os casos de endometriose em parede abdominal com antecedente de parto cesárea5,14,15,18,19.
A paridade pode ser considerada como fator de proteção. Um estudo caso-controle, realizado em 20075, não encontrou associação entre a endometriose em cicatriz e o número de partos anteriores. No presente estudo, 51,3% das pacientes tinham como antecedente somente um parto cesárea, dado semelhante à série de casos descrita por Leite et al., no qual 30,3% das pacientes eram multíparas15.
Um estudo retrospectivo19 de 81 casos relatou o aumento do risco de endometriose em cicatriz cirúrgica em pacientes submetidas ao parto cesárea eletivamente, ou seja, antes do trabalho de parto. Neste estudo, esse fator não pôde, no entanto, ser analisado.
O intervalo entre o procedimento e o aparecimento dos sintomas é variável, mas geralmente longo. Foi encontrado um intervalo inferior a quatro anos, o que coincide com outros estudos retrospectivos3,15,20,21. Acredita-se que o diagnóstico seja retardado pela não-inclusão da endometriose como diagnóstico diferencial.
O diagnóstico é facilmente realizado clinicamente com a correlação dos principais sintomas de dor e tumoração, os quais pioram durante a menstruação em pacientes em idade fértil com antecedentes de procedimentos obstétricos com a hipótese diagnóstica de endometriose3,6,8,15,17,22. Neste estudo a hipótese foi elaborada a partir do quadro clínico em 95% dos casos, em alguns deles o exame ultrassonográfico apenas complementou a hipótese, mas relata-se alto índice de erro do diagnóstico11,22,23. Possíveis diagnósticos diferenciais como granuloma, hérnia incisional, hematoma, abscesso e lipomas são responsáveis por essa dificuldade. Nesta série de casos, 90,5% apresentaram sintomatologia típica, comprovando a hipótese de que o conhecimento do quadro diminui a chance de erro.
Exames complementares de imagem podem auxiliar no diagnóstico9,24, porém, na maioria dos casos, a história clínica completa e o exame físico são suficientes. A ultrassonografia auxiliou no planejamento cirúrgico de 57% dos casos deste estudo, informando o tamanho e a profundidade da lesão.
A punção da lesão por agulha e a análise citológica podem ser importantes para o diagnóstico diferencial com abscesso, hematoma, lipoma, granuloma, sarcoma, tumor desmoide, linfoma e metástese17, mas, apresentam o risco de implantação de tecido endometriótico em outros tecidos ou da perfuração de órgãos se a lesão for uma hérnia encarcerada, por exemplo8.
O diagnóstico é definitivo somente após exérese e análise histopatológica com identificação de glândula e/ou estroma endometrial, mas, durante a cirurgia, a suspeita pode ser fortalecida pelo aspecto macroscópico de nódulo vinhoso ou azulado2.
A terapêutica não-cirúrgica com análogos de GnRH, anti-inflamatórios não-hormonais, anticoncepcionais orais e progesterona causa alívio importante dos sintomas, porém não é considerada um tratamento definitivo3,8,13,17,25,26.
O tratamento efetivo é a ressecção cirúrgica completa incluindo tecidos adjacentes3,4,9,16,17,21,22 e, em lesões muito extensas, é necessária a reconstrução da parede abdominal com auxílio de telas de polipropileno, por exemplo27. Alguns autores indicam o tratamento complementar com medicações hormonais para reduzir a taxa de recidiva, porém a indicação não é unanime, já que a recorrência é incomum e ocorre provavelmente devido à ressecção incompleta do tumor4,8,17,26. A transformação maligna é extremamente rara com poucos casos relatados28,29.
A redução da incidência dessa complicação após cesárea pode ser obtida por meio de medidas, como a limpeza exaustiva da cavidade abdominal após a histerorrafia26 e a não-utilização da mesma agulha usada na sutura do útero, em qualquer plano do fechamento da parede abdominal4, evitando com isso o transplante iatrogênico de células endometriais para a ferida operatória6. Estudos antigos recomendam a administração de altas doses de progesterona por seis meses pós-parto profilaticamente, reduzindo a chance de implantação e crescimento de tecido endometrial ectópico30. Entretanto, não há estudos clínicos controlados que esclareçam a melhor forma de prevenção, mas há consenso de que os cuidados técnicos durante os procedimentos cirúrgicos são altamente recomendáveis.
Em conclusão, a endometriose em cicatriz cirúrgica é um evento incomum, que pode ser diagnosticado somente pela história clínica e exame físico se houver conhecimento do quadro clínico típico. O tratamento eficaz é a ressecção cirúrgica completa, que apresenta baixo índice de recidiva.
Recebido 14/07/2010
Aceito com modificações 15/12/2010
Departamento de Ginecologia e Obstetrícia da Faculdade de Medicina do ABC - FMABC - Santo André (SP), Brasil.