DOI: 10.1590/S0100-72032011000400006 - volume 33 - Abril 2011
Vanessa Santos Pereira, Julie Yelen Constantino e Santos, Grasiéla Nascimento Correia, Patricia Driusso
Introdução
A incontinência urinária (IU) é definida como qualquer queixa de perda involuntária de urina1. Sua prevalência varia entre 25 e 45% em todo o mundo2, sendo as mulheres 75% mais afetadas por essa condição quando comparadas aos homens3. Essa disfunção é responsável por múltiplos efeitos sobre o bem-estar social e mental das mulheres, afetando de modo significativo a qualidade de vida4,5. Além disso, os gastos relacionados à IU, nos Estados Unidos, são estimados em 20 bilhões de dólares anuais6, fazendo dessa disfunção um problema de saúde pública.
Poucos são os estudos epidemiológicos sobre a IU na população brasileira7-9. A International Continence Society (ICS) afirmou a necessidade de estudos a respeito da incidência da IU em países em desenvolvimento1, como o Brasil. No entanto, a ausência de uma medida universalmente aceita e de fácil aplicação dificulta a identificação das mulheres acometidas e, consequentemente, o tratamento adequado10. Diante da necessidade de instrumentos validados e de simples aplicação para a identificação e avaliação de pessoas com IU, foi desenvolvido o questionário Incontinence Severity Index (ISI) por Sandvik et al.11. Trata-se de um instrumento breve, composto por duas questões a respeito da frequência e quantidade da perda urinária, aplicado como forma de avaliação das mulheres incontinentes12. O escore final obtido a partir da multiplicação dos escores da frequência pela quantidade da perda urinária, possibilita que a IU seja classificada em leve, moderada, grave ou muito grave11. Atualmente, este instrumento é utilizado em estudos epidemiológicos e clínicos, sendo altamente recomendado pela ICS10,11,13.
Para que o ISI seja melhor aplicado, é importante que seja demonstrada sua validade em diferentes países13, além da correlação dos seus resultados com os de outros métodos de avaliação da IU. Diante disto, este estudo propôs a tradução e validação do instrumento ISI para a língua portuguesa, o que permitirá uma rápida identificação e melhor avaliação das mulheres com IU no país. Além disso, buscou-se verificar a existência de correlação entre o nível de gravidade encontrado no ISI e o resultado do pad test de uma hora em mulheres com incontinência urinária de esforço (IUE).
Métodos
Este estudo tipo coorte transversal foi realizado no Laboratório de Avaliação e Intervenção sobre a Saúde da Mulher da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) no período de janeiro a setembro de 2010. A proposta foi submetida e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos desta instituição (Protocolo 134/2010).
Um total de 65 mulheres com idade superior a 18 anos e relato de pelo menos um episódio de perda urinária por tosse, espirro ou esforço no último mês, foi incluído neste estudo. A IUE foi escolhida por sua maior prevalência entre as mulheres2. Duas questões estruturadas sobre a IUE e a incontinência urinária de urgência (IUU) foram utilizadas para determinar a elegibilidade. Sobre a IUE foi realizada a questão: "No último mês, você perdeu urina de forma involuntária associada a tosse, espirro, exercício ou levantamento de peso?". Já para a investigação da IUU foi questionado: "No último mês, você experimentou uma forte vontade de urinar impossível de chegar a tempo ao banheiro?". A sensibilidade/especificidade é 0,85/0,91 e 0,90/0,90 para a primeira e a segunda questões, respectivamente14. Apenas as mulheres que responderam "sim" para a primeira questão foram incluídas no estudo. Mulheres que responderam "sim" para as duas questões (incontinência urinária mista - IUM) ou apenas para a segunda (IUU) foram excluídas.
Também foram excluídas voluntárias que realizaram tratamentos conservadores ou cirúrgicos anteriores para IU, em período gestacional ou de amamentação, submetidas à reposição hormonal, aquelas que apresentaram relato de infecção urinária ou vaginal em curso e prolapsos da parede genital anterior ou uterino que ultrapasse o introito vaginal15. A presença de doenças neurológicas que prejudicassem o controle esfincteriano, hipertensão arterial sistêmica não controlada ou incapacidade de realizar os procedimentos propostos por déficits de mobilidade ou cognitivos também foram considerados como critérios de exclusão do estudo.
Procedimentos
O estudo foi conduzido em quatro etapas: tradução e adaptação cultural do instrumento, teste-piloto, teste-reteste e validação. Inicialmente, foi realizada a tradução e a adaptação cultural do instrumento ISI, devidamente autorizada pelo autor principal do instrumento, seguindo as recomendações propostas por Beaton et al.16 para este processo. O estágio inicial foi a tradução do instrumento da língua inglesa, na qual ele foi elaborado para a língua portuguesa. Dois tradutores independentes realizaram este procedimento sendo que um tradutor possuía conhecimento científico na área e o outro tradutor, não. Em seguida, os dois tradutores compararam as versões buscando identificar divergências e, em discussão, solucioná-las. Foi então realizada a síntese das traduções e a elaboração de relatórios detalhados sobre todo o procedimento até a escolha da versão final; um juiz com conhecimento científico auxiliou neste processo.
A partir da versão traduzida escolhida por consenso, foi realizada a tradução retrógrada do questionário para a língua original. Esta etapa é importante para verificar se a versão traduzida reflete os mesmos itens contidos na versão original. Este processo foi realizado por dois tradutores individuais que tinham o inglês como língua-mãe. Em seguida, um comitê formado por profissionais da área, tradutores e pesquisadores realizou a revisão das versões anteriores, solucionando qualquer discrepância, como forma de elaborar uma versão pré-final do instrumento para a realização do teste-piloto.
Para o teste-piloto foram selecionadas aleatoriamente, dentre a amostra total, dez mulheres (idade: 60,4±9,1 anos, IMC: 25,9±3,9 kg/m2) para a aplicação do instrumento e questionamento sobre sua compreensão das questões. Foi então determinada a versão final do ISI traduzido e adaptado para o português (Tabela 1). A partir da versão final, a reprodutibilidade do instrumento foi testada pela sua aplicação em dois momentos diferentes, com intervalo de uma semana (teste-reteste) nas dez mulheres já selecionadas para o teste-piloto.
Para a validação, foi avaliada a correlação entre os resultados obtidos pela multiplicação dos escores das questões do instrumento ISI e o valor em gramas da perda urinária avaliada pelo pad test de 1 hora em 55 mulheres. A escolha do pad test de 1 hora deve-se ao fato de ser um teste de curta duração e fácil aplicação, introduzido pela ICS em 1988 com o objetivo de simplificar as medidas de perda urinária em condições controladas, de forma objetiva e quantitativa17.
Inicialmente, todas as voluntárias assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido. Em seguida, foi realizada a anamnese com as voluntárias, que responderam questões quanto à história pregressa e hábitos miccionais. Foi então aplicada a versão final do instrumento e calculado o escore final por meio da multiplicação dos resultados das duas questões. A partir do escore final, a IU foi classificada como leve (escore final 1-2), moderada (escore final 3-6), grave (escore final 8-9) ou muito grave (escore final 12). Em seguida, foi realizado o pad test de 1 hora, de acordo com o protocolo proposto por Abrams et al.18. Para a realização do pad test, a voluntária foi instruída a ingerir meio litro de água e colocar um absorvente previamente pesado em balança Denver APX200 (Denver Instrument, Denver, USA), com precisão de 0,0001g. Após 30 minutos, a paciente foi orientada à caminhar, subir e descer escadas e rampas durante 10 minutos; sentar-se e levantar da cadeira 10 vezes; tossir vigorosamente dez vezes; correr no lugar por 1 minuto; agachar para pegar um objeto no chão por cinco vezes e lavar as mãos em água corrente por 1 minuto. Após o término do período de 1 hora, o absorvente foi retirado, pesado novamente e a diferença entre estes valores registrada.
Análise estatística
Para a análise estatística, foi utilizado o programa Statistical Analysis Software (SAS, versão 9.0). A consistência interna do instrumento foi calculada por meio do coeficiente α de Cronbach. O coeficiente de correlação intraclasse e o erro padrão da medida foram utilizados para testar a reprodutibilidade/estabilidade do instrumento diante do teste-reteste. A validade de constructo foi analisada por meio do coeficiente de correlação linear de Pearson, para verificar a existência de associação linear entre o valor total do ISI e a perda urinária medida pelo pad test de uma hora. O nível de significância adotado foi de 5%.
Resultados
Entre as 65 mulheres participantes, 30 (46,1%) apresentam perda urinária leve, 30 (46,1%) perda urinária moderada, 3 (4,6%) perda urinária grave e 2 (3,1%) perda urinária muito grave segundo o escore total do ISI. Segundo os resultados obtidos no pad test de uma hora, dentre as mulheres avaliadas, 28 (43,1%) apresentaram ausência de IU (perda urinária inferior a 1 g), 30 (46,1%) apresentaram IU leve (perda urinária entre 1 e 5 g), 4 (6,1%) apresentam IU moderada (perda urinária entre 5 e 10 g) e 3 (4,6%) apresentaram IU grave (perda urinária entre 10 e 50 g). A Tabela 2 apresenta as características da população estudada. Dentre as participantes, 5/65 (7,7%) eram solteiras, 26/65 (40%) eram casadas, 10/65 (15,4%) eram divorciadas e 24/65 (36,9%) eram viúvas. A média de anos de estudo foi de 9,34 ±2,7 anos.
A avaliação da consistência interna demonstrou um coeficiente α de Cronbach igual a 0,93, demonstrando excelente confiabilidade e consistência do instrumento. O coeficiente de correlação intraclasse e o erro padrão da medida foram de 0,96 e 0,43, respectivamente. Foi verificada uma correlação forte e positiva (r=0,72, p<0,01) entre os resultados do questionário ISI e o pad test de uma hora. A média e o desvio padrão destas variáveis são mostrados na Tabela 3.
Discussão
Os resultados do presente estudo demonstraram que o instrumento ISI apresenta excelente confiabilidade, consistência interna e reprodutibilidade, além de correlacionar-se positivamente com o pad test de uma hora em mulheres com IUE. Este estudo é pioneiro na tradução e validação deste instrumento para a língua portuguesa. Os resultados encontrados concordaram com estudos que avaliaram o instrumento em outras línguas como o inglês10 e o espanhol13. Hanley, Capewell e Hagen10 aplicaram o instrumento em 237 mulheres com IU para avaliar a reprodutibilidade do ISI e sua correlação com o pad test de 48 horas. Os autores verificaram boa reprodutibilidade das duas questões do instrumento e a presença de uma correlação positiva entre o escore total do ISI e a perda urinária (r=0,36). Sandvik, Espuna e Hunskaar13 avaliaram 303 mulheres utilizando a versão em espanhol do ISI e o pad test de 24 horas e os resultados mostraram uma correlação positiva entre os dois testes (r=0,58).
Apesar da concordância entre os resultados sobre a associação entre a severidade verificada pelo ISI e a perda urinária, os estudos utilizaram diferentes protocolos para a mensuração da perda urinária. Os testes quantitativos da perda urinária por meio do uso de absorventes com pesos mensurados foram introduzidos na prática clínica em 197415. A partir de então, diferentes protocolos foram descritos até que, em 1988, a ICS recomendou o uso do pad test de uma hora para a avaliação de mulheres incontinentes. Este teste é facilmente aplicável, tem baixo custo, apresenta boa aceitação entre as pacientes19 e boa reprodutibilidade17. Além disso, sabe-se que seu resultado correlaciona-se com medidas subjetivas e de qualidade de vida em mulheres incontinentes19,20. No entanto, o pad test de uma hora apresenta a desvantagem de não mimetizar as atividades diárias comuns das pacientes por apresentar um protocolo de exercícios comuns21. Assim, algumas mulheres com relato de perda urinária não apresentaram o resultado considerado positivo para IU, ou seja, superior a 1 g de perda após o teste19. Para considerar também esta população, o presente estudo incluiu as mulheres que não apresentaram perda urinária superior a 1 g, uma vez que estas apresentaram escore significativo no ISI.
Como forma de solucionar os problemas do protocolo do pad test de curta duração, foram propostos os de longa duração, nos quais, para se estimar a perda urinária, a paciente utilizaria absorventes previamente pesados enquanto realiza suas atividades normais durante um ou dois dias21,22. Apesar de refletir melhor as ocasiões de perda das mulheres incontinentes, os testes de longa duração exigem entendimento da paciente quanto aos procedimentos e comprometimento quanto a sua realização de forma correta21. Além disso, os testes de longa duração apresentam menor adesão das pacientes quando comparado aos de curta duração13; e apesar de detectarem a perda urinária perante as atividades da vida diária, são de difícil realização e não fornecem informações imediatas como os testes de curta duração22. Os estudos que correlacionaram os resultados dos pad test de longa duração e o instrumento ISI em outros idiomas verificaram correlações positivas, mas inferiores à encontrada no presente estudo10,13. A maior correlação neste estudo pode ter ocorrido pelo uso do pad test de curta duração ou ainda pela avaliação de uma população composta apenas por mulheres com IUE, enquanto os outros estudos consideraram mulheres com IUE, IUU e IUM10,13.
A boa reprodutibilidade do ISI pode ser justificada pelo fato de esse instrumento compreender perguntas objetivas quanto à frequência e quantidade de perda urinária, sendo, portanto, menos suscetível ao viés emocional que perguntas abertas a respeito desta disfunção11. Apesar desta vantagem, esse instrumento não apresenta questões sobre qualidade de vida das mulheres incontinentes19, o que confere uma limitação do ISI. Este instrumento reflete a gravidade da perda urinária, mas não exprime as alterações nas atividades diárias das pacientes em consequência da doença23. Sabe-se que a IU é responsável por múltiplos efeitos sobre o bem-estar social e mental das mulheres, afetando de modo significativo a qualidade de vida4; e que a avaliação da qualidade de vida foi recomendada pela ICS como complemento das medidas clínicas desta disfunção14. Dessa forma, torna-se importante aplicar o instrumento ISI em união com um questionário que aborde a qualidade de vida em mulheres com IU, como o International Consultation on Incontinence Questionnaire - Short Form (ICIQ-SF)24 e o King's Health Questionnaire25.
Cabe ressaltar que os valores encontrados no presente estudo não são aplicáveis a mulheres com IUU e IUM e, portanto, novos estudos devem ser realizados com esta população específica. Além disso, o presente estudo incluiu em sua maior porcentagem mulheres com IU leve. Trata-se de uma limitação do estudo e, portanto, novos estudos devem ser realizados com mulheres que apresentem IU de moderada a grave, para se assegurar a validade do instrumento ISI nesta população.
Apesar da forte correlação entre pad test e ISI, é importante enfatizar que este instrumento não substitui a avaliação objetiva da perda urinária13. Ambos podem ser utilizados em conjunto, como forma de complementar a avaliação clínica da gravidade da IU. O valor do ISI, como outros instrumentos de avaliação subjetiva, recai sobre o rastreamento na identificação de pacientes que requerem investigação posterior26. Além disso, o ISI mostrou-se sensível na identificação das modificações antes e após o tratamento da IU10. No entanto, novos estudos devem ser realizados com a utilização do ISI em pesquisas epidemiológicas e clínicas em atendimento primário e secundário, como forma de se determinar sua real utilidade no contexto brasileiro e assegurar sua recomendação para a prática clínica no país.
Conclui-se que a versão em português do ISI, traduzida e validada para o português do Brasil, apresentou confiabilidade, consistência interna, reprodutibilidade e validade de constructo satisfatórias sendo, portanto, considerada válida para a identificação e avaliação da gravidade da IUE em mulheres brasileiras.
Agradecimento
Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pelo apoio financeiro.
Recebido 15/12/2010
Aceito com modificações 25/04/2011
Departamento de Fisioterapia da Universidade Federal de São Carlos UFSCar São Carlos (SP), Brasil.