DOI: S0100-7203(12)03400306 - volume 34 - Março 2012
João Rocha Vilela, Maria Teresinha de Oliveira Cardoso, José Gonçalves Franco Júnior, Anaglória Pontes
Introdução
A histerossonografia (HSN) é um procedimento ambulatorial que teve sua acurácia testada por ensaios clínicos1,2. Mostrou-se como método útil e confiável para avaliação da cavidade uterina com elevadas taxas de sensibilidade, especificidade e reprodutibilidade1-6. É equivalente à histeroscopia na detecção de alterações ou anormalidades da cavidade uterina1,7. É mais bem tolerada, de baixo custo, rápida e causa desconforto mínimo2,5-10. Está indicada como método de avaliação da cavidade uterina antes de indicar outro método mais invasivo como a histeroscopia diagnóstica (HTDx)11.
Para não haver surpresas com alterações, a avaliação prévia da cavidade uterina nos ciclos das técnicas de reprodução assistida (TRA) é muito importante. Tem como objetivo diminuir cancelamentos de ciclos ou falha de implantação embrionária, devido a pólipo endometrial ou outra alteração da cavidade uterina, não detectada pela ultrassonografia transvaginal convencional (USG), e com isso, melhorar as taxas de sucesso do tratamento e evitar prejuízo material e emocional a esse grupo de mulheres9,12. Alterações endometriais e/ou da cavidade uterina, não detectadas pela USG, estão presentes em uma parcela de 10 a 30% das mulheres inférteis e assintomáticas1,8,9,13.
A avaliação do útero com USG iniciou-se há mais de quatro décadas e é utilizada rotineiramente como propedêutica complementar em Ginecologia. Já nos primeiros estudos, foi observada superioridade na qualidade de imagem obtida pela HSN quando comparada àquelas da USG, proporcionando melhor localização, detalhamento da ecotextura e dimensões das alterações da cavidade uterina2,5,9,14.
Segundo a Associação Americana de Ginecologia e Obstetrícia (ACOG 2008)15, a HSN está indicada para avaliação da cavidade uterina de mulheres com: sangramento uterino anormal pré e pós-menopausa; infertilidade e abortamento habitual; suspeita de anormalidade na cavidade uterina, mioma, pólipo e sinéquia; anormalidade detectada na USG, incluindo alteração endometrial focal ou difusa; e imagem endometrial mal definida pela USG. Alguns autores sugerem que a HSN seja usada rotineiramente para a avaliação da cavidade uterina em mulheres inférteis10. Outros a indicam em casos selecionados quando a USG é anormal16. Em relação às TRA, a HSN é recomendada antes do tratamento de fertilização in vitro (FIV)9,17, enquanto outros a utilizam como opção em todas as mulheres com falha de implantação12,18.
Embora a HSN seja uma ferramenta útil na propedêutica de avaliação da cavidade uterina de mulheres sintomáticas, com sangramento uterino anormal1,2,8,11, ainda não estão bem estabelecidas as vantagens quando se pretende avaliar a cavidade uterina de mulheres inférteis que serão submetidas a tratamento com TRA7,13,16-19. Portanto, o objetivo do presente trabalho é comparar a acurácia da HSN com a USG na avaliação da cavidade uterina em mulheres inférteis candidatas às técnicas de reprodução assistida.
Métodos
Estudo transversal comparativo entre USG e HSN em mulheres inférteis candidatas à TRA. As pacientes foram acompanhadas no Centro de Reprodução Assistida (CRA) do Serviço de Reprodução Humana (SRH) da Unidade de Ginecologia e Obstetrícia (UGO) do Hospital Regional da Asa Sul (HRAS) da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal (SES/DF), Brasília DF, no período compreendido entre agosto de 2009 e novembro de 2010.
Este estudo foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria de Estado de Saúde do Governo do Distrito Federal, processo nº 283/09. As mulheres inférteis, inscritas e convocadas para tratamento com TRA foram convidadas a participar do estudo e incluídas, após concordância e assinatura aposta em "Termo de Consentimento Livre e Esclarecido".
Foram selecionadas, por conveniência, 122 mulheres entre os casais inférteis previamente inscritos e candidatos às TRA, independente da causa da infertilidade. As mulheres incluídas neste estudo não foram atendidas por queixas de sangramento uterino anormal, não eram portadoras de doença clínica ou psicológica que contraindicasse o tratamento e gravidez, nem tinham sinais clínicos de infecção genital ou doença inflamatória pélvica aguda.
Todas as mulheres foram previamente submetidas à USG entre o 3º e o 5º dia do ciclo menstrual para avaliação dos ovários, do útero e do endométrio, por diferentes observadores e equipamentos.
Em outra oportunidade, foi realizada HSN como propedêutica semiológica complementar, para avaliação da cavidade uterina na primeira metade do ciclo menstrual, entre o 5º e o 14º dia do ciclo menstrual espontâneo ou após o sangramento de privação por interrupção do progestogênio ou anticoncepcional hormonal oral combinado. O exame foi realizado por um único observador com equipamento Aloka, modelo SSD500, com transdutor transvaginal de 5 MHz.
Para a HSN, a mulher foi colocada em posição ginecológica para exposição do colo do útero, com espéculo vaginal biválvula tipo Collin. Após a limpeza do colo do útero com gaze e soro fisiológico a 0,9%, o cateter de HSN previamente preenchido com soro fisiológico para evitar a infusão de bolhas de ar na cavidade uterina foi introduzido pelo orifício externo no canal cervical até ultrapassar o orifício interno e atingir a cavidade uterina. Após a retirada cuidadosa do espéculo vaginal, o transdutor transvaginal revestido com preservativo, não lubrificado, foi introduzido na vagina da mulher para, inicialmente, realizar USG. Em seguida, realizava-se a HSN com a infusão de soro fisiológico a 0,9%, através de sistema de infusão fechado idealizado por nós. Neste sistema, o frasco com 100 ou 250 mL de soro fisiológico a 0,9% é conectado com equipo de infusão diretamente ao cateter de HSN, calibre 5, 6 ou 7 FR e 30 cm de comprimento.
Os critérios definidos como normalidade e anormalidade da cavidade uterina pela HSN e USG foram: exame normal quando o útero e a cavidade uterina foram normais e o endométrio com espessura compatível com a fase do ciclo. A cavidade uterina foi considerada anormal quando se visualizava: endométrio com espessura superior à esperada para a fase do ciclo; pólipo endometrial; mioma submucoso e alteração do formato da cavidade do útero. Mioma intramural e mioma subseroso não são alterações da cavidade.
Para a análise estatística dos dados, foram realizados procedimentos estatísticos por meio dos programas PASW® Statistics for Microsoft Windows® (SPSS) versão 18 e OpenEpi® versão 2. Devido à interdependência das variáveis principais, a análise dos dados foi feita com cálculo de frequências absolutas do tipo diferenças e percentuais e o teste χ2, considerando-se nível de significância com intervalo de confiança de 95%, p<0,05.
Resultados
A HSN foi realizada em 120 mulheres, das 122 selecionadas para o estudo. Apesar da dificuldade para introduzir o cateter em seis mulheres (4,9%), só em duas (1,6%) não foi possível realizar o procedimento, sendo então excluídas do estudo. As 120 mulheres apresentavam média de idade de 35,9±4,2 anos, variando de 25,8 a 46,8 anos, 82,5% tinham 40,0 anos ou menos. Durante a realização da HSN não ocorreu nenhuma complicação maior. Houve apenas um episódio de hipotensão postural em uma mulher com histórico de síndrome do pânico.
As causas de infertilidade observadas nos 120 casais inférteis estão representadas na Tabela 1. Em setenta e três (60,8%) a infertilidade tinha como etiologia o fator feminino e desses, 54 (45,0%) tinham fator tubário, dos quais 19 (15,8%) foram por laqueadura tubária; 62 (51,7%) apresentavam o fator masculino como causa da infertilidade, dos quais 14 (11,7%) foram por vasectomia e 15 (12,5%) casais tinham associação de fatores, a esterilização cirúrgica representa 27,5% das causas. O padrão menstrual dessas 120 mulheres distribuía-se da seguinte forma: 1 (0,8%) estava em amenorreia; 9 (7,5%) relataram fluxo menstrual escasso; 88 (73,3%), fluxo normal e 22 (18,4%), fluxo excessivo. A duração média do fluxo menstrual observada foi de 4,2 dias e intervalo médio de 28,6 dias. Setenta e três (60,8%) eram nuligestas, ou seja, tinham infertilidade primária; 18 (15,0%) eram primíparas; 17 (14,2%) secundíparas; 9 (7,5%) tercíparas e 3 (2,5%) quartíparas. Oito (6,6%) mulheres já tinham tido de uma a três gestações ectópicas.
As alterações da cavidade uterina, observadas na USG e na HSN, estão sumarizadas na Tabela 2. Na avaliação prévia da USG, 115 (95,8%) mulheres não mostravam alterações na cavidade uterina, e 5 (4,2%) apresentavam as seguintes anormalidades: 4 (3,3%) miomas submucosos, todos confirmados pela HSN e em 1 (0,8%) caso o pólipo não foi visualizado pela HSN. Entretanto, a HSN observou que 92 (76,7%) mulheres apresentavam cavidade uterina sem alterações, e em 28 (23,3%) foram detectadas 36 alterações, 5 mulheres apresentavam mais de uma alteração na cavidade uterina. As anormalidades visualizadas na HSN foram: 15 (12,5%) pólipos, 9 (7,5%) alterações do formato da cavidade uterina, 6 (5,0%) miomas submucosos, 4 (3,3%) espessamento endometrial anormal para a fase do ciclo menstrual e 2 (1,7%) septos uterinos.
A HSN mostrou alterações na cavidade uterina de 24 mulheres inférteis candidatas à TRA, as quais não tinham sido observadas previamente pela USG e confirmou os 4 casos de mioma submucoso visualizados pela USG, o pólipo visto pela USG não foi observado pela HSN (Tabela 2). Portanto, a HSN foi capaz de detectar mais alterações na cavidade uterina do que a USG, diferença significativa (p=0,002).
Discussão
A avaliação da cavidade uterina, para a detecção de anormalidades que possam interferir na implantação embrionária ou na evolução da gravidez, é uma importante etapa na preparação das mulheres que serão submetidas a tratamento com as TRA, justificada pela incidência relativamente alta dessas anormalidades.
Não há dúvida que a HSN é um procedimento que fornece melhor avaliação da cavidade uterina quando comparada à ultrassonografia. Contribui com informações adicionais, em mulheres inférteis, quanto à profundidade da alteração, morfologia da cavidade uterina, do útero e dos ovários, o que não é possível avaliar pela histeroscopia6,8,12,20.
Na análise das características clínicas dos casais estudados, candidatos às TRA, chama-nos a atenção o elevado percentual da infertilidade decorrente de vasectomia (11,7%) e laqueadura tubária (15,8%). Esse é um dado preocupante, visto que 27,5% dos casais no presente estudo foram submetidos a tratamento de alta complexidade pós-esterilização cirúrgica. E é um alerta para que a contracepção definitiva seja muito bem avaliada antes da sua realização.
Os resultados do presente estudo demonstram que a HSN é superior à USG para detectar alterações na cavidade endometrial. O elevado percentual de alterações da cavidade uterina detectadas pela HSN (23,3%) em relação à USG (4,2%) mostra a importância e a necessidade de realizar a HSN, rotineiramente, em todas as mulheres candidatas à TRA, pois trata-se de procedimento de alta complexidade e custo elevado. Apesar de nosso estudo apresentar limitações que não podem deixar de ser levadas em consideração, visto que a USG prévia foi realizada por diferentes observadores e equipamentos, mostra, entretanto, que este resultado traduz a realidade da nossa prática clínica diária; justifica a diferença estatisticamente significante observada entre a USG e HSN e reforça que HSN deve ser realizada antes de um procedimento de alto custo como a TRA. Esses nossos resultados estão de acordo com estudos prévios que mostram que a HSN tem mais acurácia que a USG para identificar alterações intracavitárias, como mioma e pólipo20, e revela a alta precisão da HSN em detectar anormalidades da cavidade uterina em mulheres inférteis8,19. Entretanto, esses resultados diferem dos observados em outro estudo, o qual conclui que a HSN não contribui com achados adicionais quando a USG é normal, mas é benéfica se a USG é anormal em mulheres inférteis16.
Dentre as alterações da cavidade uterina, observadas pela HSN nas mulheres no nosso estudo, o pólipo endometrial foi o achado mais prevalente, com percentual de 12,5%. Esse resultado é coerente com outros estudos que mostram maior frequência de pólipo endometrial em mulheres submetidas à TRA com falha de implantação embrionária12,18. A realização da polipectomia antes da TRA diminui o cancelamento da TRA9 e melhora a taxa de gravidez quando comparada às que não realizaram esse procedimento9,12.
As alterações da cavidade uterina são consideradas causas tanto de falha de implantação quanto de perda gestacional precoce e abortamento. A presença de pólipo endometrial tem sido relatada em mais de 10% das mulheres assintomáticas no menacme e em até 32% das mulheres inférteis que se submetem à FIV8. Apesar de controverso e de não estar bem claro, o mecanismo pelo qual o pólipo é responsável por parte do insucesso dos procedimentos de TRA seria decorrente da diminuição da área de implantação, alteração do volume da cavidade uterina ou produção significativamente aumentada de glicoproteínas e citocinas21. A alteração do formato da cavidade uterina, visualizada nas mulheres do nosso estudo, é um resultado interessante que não tem sido descrito em estudos anteriores, mas é possível que essa alteração possa influenciar na implantação embrionária e justificar a infertilidade desse grupo de mulheres inférteis.
No presente estudo, a HSN detectou 5% de miomas submucosos, enquanto o USG, 3,3%. Esse dado é compatível com o trabalho de Grimbizis et al.20, que mostrou que HSN tem mais valor que a USG no diagnóstico de mioma e pólipo endometrial. Miomas são frequentemente encontrados em mulheres em idade reprodutiva. Sua localização e o tamanho interferem diretamente nas taxas de gravidez e podem acarretar um aumento de complicações durante a gestação, como perda gestacional precoce e parto prematuro22. A falha de implantação em mulher com mioma deve-se à alteração da vascularização e à reação inflamatória local devido à produção de substâncias vasoativas e à presença excessiva de androgênios no endométrio23,24.
No nosso estudo, a presença de dois septos intrauterinos não observados pela USG enfatiza a importância da HSN em identificar anomalias uterinas como útero septado19. As malformações mulerianas também comprometem a implantação embrionária e são causa de perda gestacional, abortamento precoce, tardio e parto prematuro. A maioria dessas malformações não é passível de correção ou não há comprovação científica da eficácia dessa correção; exceção para o septo uterino, que deve ser tratado antes de qualquer tentativa de gravidez, assim como outras malformações menos frequentes.
O diagnóstico do septo uterino, bem como o da sinéquia, é difícil, e pouco provável que sejam feitos por USG; porém, são facilmente detectados por HSN. O procedimento indicou sensibilidade de 77,8 e 75% para detecção destas malformações, contra 44,4 e 0% observados pela HSG e a USG, respectivamente. No entanto, esse estudo mostrou um elevado índice de falso-positivo25. A taxa elevada de falso-positivo na HSN pode ser explicada pela facilidade de as sinéquias mucosas serem desfeitas, tanto pela ação mecânica direta da camisa da ótica, quanto indireta pela maior distensão da cavidade (com gás ou líquido) necessária para a HTDx.
A HSN é procedimento ambulatorial, "menos invasivo", de melhor custo-benefício, com melhor acurácia e especificidade na identificação de anomalias da cavidade uterina, como útero septado e bicorno, quando comparada à HSG ou HTDx em mulheres com história de perda gestacional recorrente, infertilidade ou diagnóstico prévio de anomalia uterina19.
Qualquer exame diagnóstico é passível de falha ou impossibilidade de execução. A estenose cervical pode ser causa impeditiva para a realização tanto da HSN quanto da HTDx, pela impossibilidade de adentrar a cavidade uterina. Portanto, a estenose cervical não é diagnóstico da HSN e sim causa de impossibilidade de realização do exame. Em nosso estudo, houve dificuldade para introduzir o cateter em 4,9% das mulheres.
Quando comparada com a HTDx, considerada padrão ouro para avaliação da cavidade uterina, a HSN é mais bem tolerada, menos invasiva e menos onerosa5,10. É superior à HSG para a detecção de anormalidades da cavidade uterina, além de não haver exposição à radiação e nem utilizar contraste iodado, o que diminui os risco do exame25,26.
O baixo índice de complicações é uma de outras vantagens da HSN. Em uma revisão foram relatadas apenas 5 complicações em 2.278 procedimentos. É extremamente difícil avaliar o valor da HSN em mulheres inférteis através das taxas de gravidez, devido às inúmeras variáveis envolvidas na infertilidade como: causa de infertilidade, idade da mulher e do casal, doenças concorrentes, qualidade embrionária, estrutura do laboratório e protocolos de tratamento. E não se pode afirmar que todas as alterações encontradas causariam prejuízo à receptividade endometrial e à implantação embrionária se não fossem tratadas.
Os resultados do presente estudo confirmam dados da literatura em que a HSN é mais efetiva que a USG na detecção de alterações intracavitárias, em mulheres inférteis, e que este exame deveria ser realizado rotineiramente antes das TRA. A HSN poderá ser facilmente incorporada na propedêutica das candidatas às TRA e contribuir para reduzir as falhas de implantação embrionária e, consequentemente, diminuir custos financeiros e emocionais a casais que irão se submeter à TRA.
Recebido 28/07/2011
Aceito com modificações 24/01/2012
Trabalho realizado no Serviço de Reprodução Humana SRH, Hospital Regional da Asa Sul HRAS, Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal SES/DF Brasília (DF), Brasil.
Fonte de financiamento: Esta pesquisa foi desenvolvida com apoio financeiro da Fundação de Ensino e Pesquisa em Ciências da Saúde mantidas pela FEPECS Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal SES/DF, processo nº 04/34 2009.