DOI: S0100-7203(12)03400603 - volume 34 - Junho 2012
Andressa Biscaro, Sheila Koettker Silveira, Giovani de Figueiredo Locks, Lívia Ribeiro Mileo, João Péricles da Silva Júnior, Péricles Pretto
Introdução
A mola hidatiforme (MH) é um tumor originário da placenta que, em sua condição benigna, divide-se em completa ou incompleta (parcial)1,2. A forma completa resulta da fecundação de um óvulo com núcleo ausente ou inativo por um espermatozoide 23X ou mais raramente por dois espermatozoides, originando uma célula 46XX ou 46XX/46XY, respectivamente. Não há elementos fetais3-6. Já o cariótipo da mola incompleta é triploide, 69XXY (mais comum) ou tetraploide, 92XXXY, resultado da fertilização de um óvulo normal por dois espermatozoides ou um espermatozoide diploide. Pode haver feto, porém é inviável e apresenta crescimento intrauterino restrito e/ou múltiplas malformações1,3,5. A epidemiologia da doença varia conforme a distribuição geográfica e, no Ocidente, ocorre na proporção de um caso para cada 1-2 mil gestações5. A apresentação clínica da MH alterou-se drasticamente nas últimas décadas, e em grande parte dos casos o diagnóstico é feito em mulheres assintomáticas. Nos casos sintomáticos a queixa mais comum é o sangramento vaginal associado à amenorreia5,7,8.
São relatados como fatores de risco para a doença a idade materna (mais comum em adolescentes e entre mulheres com mais de 40 anos), a história pregressa de aborto espontâneo e os níveis séricos elevados da gonadotrofina coriônica humana (produzido em excesso pelo trofoblasto hiperplasiado)2,7-9.
O diagnóstico precoce da MH é um desafio para ginecologistas/obstetras e esbarra em inúmeras dificuldades, como um quadro clínico frusto e a baixa taxa de detecção em seus estágios iniciais por meio dos exames de imagem. Na prática, apenas 40 a 60% das gestações molares são detectadas pela ultrassonografia, e a histopatologia continua sendo o padrão-ouro para o diagnóstico da MH10.
Este trabalho teve como objetivo determinar a frequência de MH em tecidos obtidos por curetagem uterina e descrever os métodos utilizados para o diagnóstico da doença em uma série de pacientes tratadas por curetagem uterina em uma cidade do Sul do Brasil.
Métodos
Trata-se de um estudo prospectivo realizado na Maternidade Carmela Dutra, em Florianópolis (SC), no período de 20 de abril de 2010 a 19 de abril de 2011. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do próprio serviço, sob o Protocolo nº 0019.0.233.000-10.
Foram incluídas todas as pacientes admitidas com diagnóstico clínico e/ou ultrassonográfico de aborto ou suspeita de MH que assinaram o Termo de Consentimento Informado Livre e Esclarecido. Foram excluídas as que se recusaram a participar do estudo e aquelas cujo material obtido pela curetagem não foi enviado para avaliação anatomopatológica.
Foram coletados dados demográficos (idade; faixa etária dividida em abaixo de 20 anos, entre 20 e 40 anos e acima de 40 anos; raça ou cor branca e não branca) e antecedentes obstétricos (número de gestações e abortos prévios).
As informações referentes à gestação atual também foram analisadas: idade gestacional no momento do diagnóstico calculada pela data da última menstruação ou exame ultrassonográfico e classificada como perda gestacional precoce se inferior ou igual a 12 semanas e tardia se mais de 12 semanas11. O quadro clínico foi considerado suspeito para gestação molar se houvesse útero aumentado para a idade gestacional, hiperêmese ou pré-eclâmpsia precoce).
No momento da admissão foi coletada amostra sanguínea para dosagem sérica quantitativa da fração beta da gonadotrofina coriônica humana (beta-hCG), a qual foi dosada pelo método de quimioluminescência. O nível foi expresso em mUI/mL e foi considerado elevado se estivesse acima de 100.000 mUI/mL.
Quando indicado, foi realizado exame ultrassonográfico e os achados classificados em: a) óbito embrionário/fetal: embrião maior que 5 mm ou feto sem atividade cardíaca; b) aborto incompleto: eliminação parcial dos produtos da concepção; c) gestação anembrionada: presença de saco gestacional maior que 18 mm sem evidência de tecidos embrionários (vesícula vitelínica ou embrião); d) imagem suspeita de MH: cavidade uterina preenchida por uma massa heterogênea com espaços anecoicos de tamanho e formas variáveis - aspecto de "tempestade de neve" - com ou sem cistos tecaluteínicos12-14.
As pacientes que no momento da admissão apresentaram colo uterino aberto no exame físico foram classificadas como aborto em curso ou inevitável para o qual não há indicação de ultrassonografia12.
O material curetado foi inspecionado pelo médico de plantão e definido como suspeito de gestação molar caso apresentasse vesículas. O material foi armazenado em formol e enviado para análise por um patologista que desconhecia o quadro clínico da paciente. Foram consideradas e incluídas na análise as seguintes categorias de achados hostológicos: a) restos placentários ou deciduais: aborto propriamente dito; b) Arias-Stella: reação decidual própria da gestação com poliploidia das células causada pelo estímulo progesterônico; c) restos com degeneração hidrópica: hidropsia das vilosidades coriônicas com hiperplasia trofoblástica polar ou lateral; d) degeneração molar: hidropsia parcial ou total das vilosidades coriônicas associada à proliferação trofoblástica focal, multifocal ou circunferencial15,16.
Os dados foram armazenados e analisados nos programas Microsoft Excel® 2007 e Epi-Info, versão 6.0 (STATCALC). Os resultados estão apresentados de forma descritiva como frequência (porcentagem) ou média±desvio padrão. Para análise da associação entre variáveis qualitativas, foi usado o teste do χ2 e admitiu-se significância quando p<0,05.
Resultados
No período do estudo, 515 pacientes foram submetidas à curetagem uterina por aborto ou suspeita de gestação molar, das quais 446 compuseram a amostra. Cinquenta e quatro pacientes não aceitaram participar da pesquisa, e 15 foram excluídas porque o material obtido pelo esvaziamento uterino não foi enviado para exame anatomopatológico.
A frequência de MH foi de 2,2% (10 casos). O restante correspondeu a restos placentários e deciduais (90,6%; 404 casos), restos ovulares com degeneração hidrópica (5,2%; 23 casos) e Arias-Stella (2,0%; 9 casos).
As características demográficas e as variáveis obstétricas estão apresentadas na Tabela 1. A média de idade das pacientes com MH foi de 31±10 anos, a maioria era da raça branca, multípara, estava na faixa etária dos 20 aos 40 anos e não tinha história de aborto prévio, porém não houve associação significativa entre essas características e o diagnóstico da doença.
Das pacientes com idade gestacional conhecida no momento do diagnóstico, a maioria tratava-se de perda gestacional precoce (75% das pacientes com MH e 84,3% das pacientes sem a doença) e a média de idade gestacional das pacientes com gestação molar foi 66,5 dias±23,5 dias.
Em ambos os grupos, as principais queixas no momento da admissão foram: o sangramento vaginal e as cólicas. Suspeitou-se da doença em apenas uma paciente (1/10 casos, 10%) pela apresentação de sangramento vaginal associado a volume uterino maior que o esperado para idade gestacional, dispneia e níveis tensionais aumentados no momento da admissão hospitalar. Essa paciente foi a única a apresentar queixa de eliminação de vesículas.
A dosagem sérica quantitativa da beta-hCG foi obtida em 422 casos. Das pacientes com diagnóstico anatomopatológico de MH (nove casos com dosagem) os níveis do hormônio foram superiores a 100.000 mUI/mL em 44,4%, e entre as pacientes sem a doença (413 casos) em 1,9% (p=0,00004). Todas as pacientes com esse nível de hormônio e confirmação anatomopatológica de MH apresentavam suspeita ultrassonográfica de gestação molar e uma delas também de suspeita clínica.
Foram submetidas a exame ultrassonográfico 333 pacientes (Tabela 2). Entre aquelas com imagem sugestiva de gestação molar, houve confirmação diagnóstica em cinco (41,7%) casos. Os outros sete (58,3%) eram falso-positivos (anatomopatológico de restos deciduais e placentários). Observou-se associação significativa entre achado ultrassonográfico suspeito e confirmação da doença pela análise anatomopatológica (p=0,0001).
Em metade dos casos de MH a doença não foi suspeitada pelo quadro clínico, níveis séricos da beta-hCG ou achados ultrassonográficos.
Discussão
A frequência de MH relatada neste estudo (2,2%) é semelhante à observada por outros autores (2,5; 2,4%)9,17. No entanto, como a epidemiologia varia conforme o local de estudo, os dados são de difícil comparação devido à divergência de denominadores. Como exemplo, em parte das casuísticas, a frequência de MH é obtida pela relação com o número de gestações nascidos vivos, o que dificulta a comparação dos dados.
Em um estudo envolvendo 1.606 pacientes admitidas por aborto espontâneo de primeiro trimestre, encontrou-se na análise histológica 1.119 (69,7%) produtos da concepção, 44 (2,1%) MH incompleta e sete (0,4%) MH completa. Duzentas e setenta e duas pacientes (16,9%) apresentaram tecidos deciduais sem vilosidades coriônicas (Arias-Stella)9. A proporção entre esses achados é semelhante à encontrada nesta pesquisa, exceto pelo menor índice deste estudo, de Arias-Stella (2,0%). Pode-se explicar a ausência de vilosidades coriônicas encontradas em ambos os estudos pela eliminação do restante dos produtos da concepção antes do esvaziamento cirúrgico ou pelo valor da espessura endometrial, que define aborto incompleto ainda ser motivo de debate9.
A média de idade e a raça das pacientes deste trabalho não diferiu das de outras populações10,18-20. Alguns estudos relatam como fator de risco para mola a idade menor que 20 anos e maior que 40 anos2,17,21. Neste trabalho, foram encontrados mais casos de MH entre 20 e 40 anos, o que provavelmente pode ser explicado pela maior frequência de gestações nesta faixa etária.
A literatura descreve como sintoma mais comum da MH o sangramento vaginal com um número cada vez menor de pacientes que apresentam os sinais e sintomas clássicos da gestação molar1,19. Portanto, pode-se afirmar que, na atualidade, as molas iniciais carecem de achados clínicos que indiquem seu diagnóstico.
Apesar do quadro clínico frusto, o diagnóstico de MH está sendo realizado em idades gestacionais bastante precoces. Na Califórnia, a duração média das gestações com diagnóstico de mola é de 58 dias, em Londres, de 70 dias e, na Austrália, de 91 dias, semelhante ao encontrado no presente estudo (66,5 dias)18,20,22.
A associação entre os níveis séricos da beta-hCG (principalmente quando superiores a 100.000 mUI/mL) e o risco de MH já está bem-estabelecida5. Observou-se, neste trabalho, que todas as pacientes com níveis de beta-hCG superior a 100.000 mUI/mL tinham suspeita ultrassonográfica da doença, e uma apresentava também suspeita clínica, ou seja, pode-se afirmar que, apesar de os altos níveis deste hormônio serem indicativos de mola, a sua realização não traz benefício adicional para o diagnóstico da doença, mas é relevante para o seguimento pós-esvaziamento.
Com relação à imagem, a taxa de detecção de MH é maior para mola completa que para a parcial, e pode ocorrer falso-positivos7,14. Estudos relatam taxas de 5822 a 84%23 de suspeita ultrassonográfica para MH completa e 1822 a 30%23 para MH incompleta. Ou seja, perde-se a oportunidade de diagnóstico em 16 a 42% das MH completas e em 70 a 82% das MH parciais. Neste trabalho, houve suspeita ultrassonográfica em apenas metade dos casos de mola. Talvez a baixa frequência da doença possa explicar a falta de experiência do examinador e contribua para a baixa taxa de acertos da ultrassonografia de rotina no primeiro trimestre7,19,20.
Em um centro de referência para MH, a maioria dos exames ultrassonográficos falso-positivos corresponderam a abortos hidrópicos, ao contrário deste estudo, que encontrou maior correlação com restos ovulares7. Os demais casos de mola sem suspeita ultrassonográfica tinham diagnóstico pré-cirúrgico de gestação anembrionada ou óbito embrionário/fetal, dado compatível com este e outros trabalhos19,22.
Conclui-se, portanto, que a frequência de MH é baixa, e a doença pode não ser suspeitada pelo quadro clínico, pela ultrassonografia e pelo nível sérico da beta-HCG, exigindo análise anatomopatológica dos tecidos obtidos pelo esvaziamento uterino para o seu diagnóstico.
Agradecimentos
Aos colegas e funcionários da Maternidade Carmela Dutra e do Laboratório AP, que, de alguma forma, contribuíram para a execução deste trabalho.
Recebido 16/02/2012
Aceito com modificações
08/05/2012
Trabalho realizado na Maternidade Carmela Dutra - Florianópolis (SC), Brasil.