DOI: S0100-7203(12)03400503 - volume 34 - Maio 2012
Luciana Azôr Dib, Maria Cristina Picinato Medeiros de Araújo, Roberta Cristina Giorgenon, Rui Alberto Ferriani, Paula Andrea de Albuquerque Sales Navarro
Introdução
Métodos não invasivos para a avaliação da qualidade oocitária, importante determinante da qualidade embrionária e sucesso dos procedimentos de reprodução assistida, são muito importantes quando se trabalha com um material limitado e valioso como os óvulos humanos.
Sabe-se que para o oócito maduro estar preparado para a fertilização é necessário que o fuso meiótico, estrutura fundamental no processo de desenvolvimento oocitário, mantenha a sua integridade e funcionabilidade1-3. Um fuso funcionante, essencial em oócitos sadios em metáfase II (MII), garante a fidelidade da segregação cromossômica4-6. A metodologia considerada como padrão-ouro para a avaliação dessa estrutura celular é a imuno-histoquímica com análise confocal dos microtúbulos e distribuição cromossômica7,8. Todavia, essa metodologia requer a fixação dos oócitos, inviabilizando a sua utilização subsequente nos procedimentos de reprodução assistida. Com a padronização e a utilização da microscopia de polarização, que permite a análise de estruturas birrefringentes, como o fuso celular oocitário, sem comprometer a sua viabilidade e utilização clínica subsequente, têm surgido diversos estudos avaliando a aplicabilidade clínica dessa metodologia como preditora da qualidade oocitária e dos resultados dos procedimentos de reprodução assistida (RA)3,9-11.
A microscopia de polarização permite ao embriologista avaliar o estágio de maturação nuclear oocitário12, a visualização ou não dessa estrutura celular, assim como a sua localização em relação ao primeiro corpúsculo polar (CP)13. A visualização do fuso meiótico em oócitos pode ter importância clínica em predizer a fertilização pós-injeção intracitoplasmática de espermatozoide (ICSI)14-19 e a qualidade embrionária14,16-19. Por um lado, entretanto, alguns estudos na literatura não confirmaram essa correlação13,20. Por outro, a identificação da posição do fuso meiótico em relação ao primeiro CP pode prevenir os embriologistas de danificarem essa importante estrutura celular durante a ICSI11,13, o que também poderia estar relacionado ao resultado dos procedimentos de RA. Além disso, a visualização do fuso meiótico pode ser usada para selecionar oócitos que serão injetados na ICSI e apresentando especial relevância clínica em países onde existe um limite legal do número de oócitos a serem fertilizados3 e de embriões transferidos21.
Como os dados apresentados pela literatura internacional são controversos, no presente estudo, objetiva-se avaliar o estágio de maturação nuclear de oócitos com o primeiro CP visível de pacientes inférteis submetidas à estimulação ovariana para ICSI e comparar os resultados da ICSI entre os oócitos em telófase I (TI) e MII, e entre aqueles em MII com e sem fuso celular visível.
Métodos
Foi realizado um estudo prospectivo de março de 2008 a setembro de 2009, junto ao Setor de Reprodução Humana do Departamento de Ginecologia e Obstetrícia da FMRP/USP. Esse estudo foi submetido e aprovado pelo Comitê de Pesquisa e todos os casais submetidos à indução da ovulação para a realização de ICSI, que preencheram os critérios de inclusão e manifestaram o desejo de participar do projeto, assinaram o termo de consentimento pós-informado.
Cento e seis pacientes preencheram os critérios de inclusão no período do estudo. Foram incluídas pacientes com idade menor ou igual a 38 anos, hormônio folículo estimulante (FSH) basal menor que 10 mIU/mL e índice de massa corpórea (IMC) menor que 30 kg/m².
Excluíram-se pacientes com diabetes mellitus ou quaisquer outras endocrinopatias, doença cardiovascular, lúpus eritematoso sistêmico e outras doenças reumatológicas, infecção pelo vírus HIV, qualquer infecção ativa, tabagismo ou o uso de medicações hormonais e anti-inflamatórias hormonais e não hormonais nos últimos dois meses, previamente à programação para o procedimento de reprodução assistida.
Protocolo de estimulação ovariana controlada
O bloqueio hipofisário foi iniciado usando agonista do hormônio liberador de gonadotrofinas (GnRHa) dez dias antes do dia de realização da ultrassonografia transvaginal basal (protocolo longo), por meio da administração de acetato de leuprolide (Lupron®, Abott, Brasil). As pacientes receberam 100-300 UI por dia de FSH recombinante (FSHr) (Gonal-F®, Serono, Brasil; Puregon®, Organon, Brasil), nos primeiros 6 dias da indução. Quando, pelo menos, 2 folículos atingissem 18 mm de diâmetro médio, administrava-se gonadotrofina coriônica humana (hCG) recombinante (Ovidrel®, Serono, Brasil). A captação dos oócitos foi realizada 34-36 horas após a administração do hCG recombinante.
Preparação oocitária
Todo material aspirado durante a captação dos oócitos foi analisado para a identificação e o isolamento dos complexos oócito-cumulus. Depois de identificados, os complexos oócito-cumulus foram isolados do fluido folicular, colocados em placa separada e lavados cuidadosamente em meio de cultura Human Tubal Fluid-Hepes (HTF, Irvine Scientific) para a remoção de sangue e debris. A seguir, foram colocados em placas NUNC (Multidish 4 wells Nuclon, Delta SI), preenchidas com o meio de cultura HTF e cobertas com óleo mineral, e levados à incubadora em mistura gasosa de CO2 a 5%, sob condições ideais de temperatura (37ºC) e umidade (95%) por um período de 2-3 horas. Após esse período, para se realizar a remoção do Cumulus oophorus e da Corona radiata, os complexos oócito-cumulus foram colocados em microgotas de 25 µL de hialuronidase (H4272 tipo IV-S, Sigma), na diluição de 80 UI/mL de HTF/Hepes (Irvine Scientific), por, no máximo, 30 segundos e, então, lavados 2 ou 3 vezes com o meio HTF modificado (HTF/Hepes, Irvine Scientific) suplementado com Soro Sintético Substituto (SSS) a 10%. A remoção mecânica dos restos celulares foi feita com o auxílio de uma pipeta de desnudação (stripper pipette 130 µm denuding pipette, Cook, Melbourne, Austrália).
Após a realização do desnudamento oocitário (remoção do Cumulus oophorus), realizou-se a identificação do grau de maturidade dos oócitos, sob visualização ao microscópio de luz. Os oócitos imaturos (em estágio de vesícula germinativa ou MI) foram descartados. Os oócitos maduros (caracterizados morfologicamente pela presença de um corpúsculo polar extruso) foram incubados em gotas de 25 µL de HTF+SSS 10% por mais 1 hora (após o desnudamento oocitário) para, então, serem avaliados pelo Octax ICSI GuardTM System (Medical Technology Vertriebs-GmbH, Altdorf, Germany) e injetados por meio da realização da ICSI.
Visualização do fuso meiótico por meio da microscopia de polarização
Os fusos celulares dos oócitos com extrusão do primeiro CP foram avaliados usando um microscópio invertido, equipado com uma vídeo câmera e com o hardware do microscópio de polarização, o qual consiste de cristais elétricos e de um controlador eletro-óptico (Octax ICSI GuardTM System, Medical Technology Vertriebs-GmbH, Altdorf, Germany). Os grupos de cristais elétricos são controlados pelo computador através do software Octax EyeWareTM (Universal Imaging Corp., Boston, MA). Os oócitos foram avaliados a 37°C, em gotas de 5 µl de HTF/Heppes+SSS 10%, em placas de Petri revestidas com vidro na parte inferior (MatTek Corp., Ashland, MA), colocadas sobre uma placa aquecida a 37°C. Utilizou-se um número máximo de 7 oócitos em cada placa, sendo o tempo necessário para analisar o fuso celular pela microscopia de polarização e realizar a ICSI inferior ou igual a 7 min.
Para controlar os vieses metodológicos relativos a não visualização do fuso secundária à realização do desnudamento celular e ao envelhecimento oocitário, padronizou-se que o desnudamento fosse realizado duas a três horas após a captação oocitária e, após esse procedimento, os oócitos eram recolocados nas placas de cultivo previamente equilibradas, na incubadora, por mais uma hora, para somente depois serem submetidos ao imageamento e à ICSI.
Os oócitos com primeiro CP visível foram analisados pela microscopia de polarização e caracterizados quanto ao estágio real de maturação nuclear (TI ou MII), presença ou não de fuso celular visível e localização do fuso celular dos oócitos em MII. Foram considerados em TI os oócitos que apresentavam fuso celular alongado, perpendicular à membrana oocitária, estendendo-se até o primeiro CP. Os fusos celulares em MII foram caracterizados pela presença de fibras birrefringentes distribuídas radialmente, com a forma de barril e orientadas paralelamente à membrana cortical. Como os cromossomos são minimamente birrefringentes, não são adequadamente analisáveis por meio dessa metodologia.
Avaliação pós-ICSI, taxas de fertilização, clivagem e qualidade embrionária
Cerca de 18-19 horas após a ICSI, foi avaliada a fertilização, caracterizada pela presença de 2 pró-núcleos e 2 CPs (a taxa de fertilização corresponde ao número de oócitos fertilizados, divididos pelo número de oócitos injetados x 100). Cerca de 24 horas após a ICSI foi realizada a caracterização da presença de clivagem embrionária (a taxa de clivagem corresponde ao número de embriões que sofrem clivagem, ou seja, divisão celular, divididos pelo número total de oócitos fertilizados x 100).
Cerca de 44-48 horas após a ICSI, D2, foi realizada a análise da qualidade embrionária (quanto ao número e simetria de blastômeros, percentagem de fragmentação e presença ou não de multinucleação). Foram considerados como embriões de boa qualidade no D2 de desenvolvimento os que apresentaram quatro blastômeros, simétricos, sem fragmentação e sem multinucleação.
Análise estatística
Os dados foram avaliados com relação à maturação nuclear (percentagens de oócitos em TI e em MII) e de acordo com a visualização ou não do fuso celular (do total de oócitos que estavam em MII) e foram comparados com relação às taxas de fertilização, as taxas de clivagem e a qualidade embrionária em D2. Os dados foram analisados comparativamente através do teste exato de Fisher. Em todas as análises foi considerado o nível de significância de 5% (p<0,05).
Resultados
O fuso meiótico de 516 oócitos com o primeiro CP extruído foi visualizado através da microscopia de polarização, imediatamente antes da realização da ICSI. Dezessete dos 516 oócitos avaliados estavam em TI (3,3%) e 499 (96,7%) em MII.
Ao se avaliar o grau de maturação nuclear (MII versus TI) e compará-lo com os resultados de reprodução assistida, foi observada uma diminuição significativa das taxas de fertilização (p=0,03), considerando o total de oócitos injetados em TI (17 oócitos injetados, sendo 9 fertilizados; taxa de fertilização de 53%) quando comparados ao total de oócitos injetados em MII (499 oócitos injetados, sendo 389 fertilizados; taxa de fertilização de 78%). Não se encontrou diferença significativa entre as taxas de clivagem nos diferentes grupos (p=0,9). Nenhum oócito fertilizado, após injeção em TI, formou embrião de boa qualidade em D2. (Tabela 1).
Ao se comparar os resultados de reprodução assistida entre os oócitos em MII com ou sem fuso celular visível, não foi observada diferença significativa nas taxas de fertilização (p=0,2), clivagem (p=0,3) e no número de embriões de boa qualidade formados em D2 (p=0,5).
Discussão
Oócitos em TI ainda não finalizaram a meiose I, mas podem apresentar, à microscopia óptica, características morfológicas semelhantes a oócitos que completaram a meiose I e estão em MII10.
As anomalias meióticas podem contribuir para a falência do desenvolvimento celular por meio de diferentes vias, que vão desde a inabilidade do oócito em completar o processo de maturação, tornando-se incapaz de ser fertilizado, até a ocorrência de erros variáveis no processo de maturação meiótica que não impossibilitam a fertilização, mas, contudo, podem comprometer o desenvolvimento embrionário pré- e/ou pós-implantação, bem como a viabilidade futura do concepto22-24. Assim, qualquer alteração no complemento cromossômico, que possa ser originada por uma alteração do fuso meiótico, poderia conduzir a um estado de aneuploidia por não disjunção, junção desbalanceada ou disjunção prematura das cromátides e perda de cromossomos25-28, comprometendo o desenvolvimento embrionário.
No presente estudo, observou-se uma diminuição significativa das taxas de fertilização quando foi analisado o total de oócitos maturados in vivo que foram injetados em TI quando comparados ao total de oócitos injetados em MII (53 x 78%, respectivamente). Além disso, os oócitos em TI que clivaram não formaram embriões de boa qualidade em D2. Com base nos dados analisados, sugere-se que a utilização de oócitos com o primeiro CP visualizado, em TI (ou seja, que, apesar de aparentemente maduros, não concluíram a meiose I) em procedimentos de reprodução assistida (ICSI), esteja associada a piores prognósticos relativos ao sucesso gestacional subsequente, relativos tanto a menores taxas de fertilização como formação de embriões de boa qualidade.
Alguns estudos3,29 evidenciaram aumento significativo na taxa de fertilização, clivagem e de embriões de boa qualidade no terceiro dia de desenvolvimento de oócitos com fuso celular visível quando comparados àqueles sem fuso celular visível. Esses resultados sugerem que a presença do fuso celular poderia ser um fator de predição para se obter maiores taxas de fertilização, clivagem e de embriões de boa qualidade em D3. Os resultados do presente estudo foram discordantes com os da literatura, pois não se observou diferença significativa entre as taxas de fertilização, de clivagem e de boa qualidade de embriões quando avaliada a presença ou não de fuso celular visível.
Conclui-se, neste estudo, que é possível que a análise do estágio de maturação nuclear oocitária possa ser utilizada como fator de predição das taxas de fertilização, o que precisa ser analisado em estudos com maiores casuísticas. A sugestão é que se for postergada a inseminação dos oócitos em TI até a conclusão da meiose II, possa ter um melhor resultado dos procedimentos de reprodução assistida, o que precisa ser avaliado por meio de estudo com metodologias pertinentes.
Recebido: 28/02/12
Aceito com modificações: 30/03/12
Trabalho realizado no Laboratório de Ginecologia e Obstetrícia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Setor de Reprodução Humana, Departamento de Ginecologia e Obstetrícia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo - USP - Ribeirão Preto (SP), Brasil.
Fonte de financiamento: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP - processos 2008/58197-6; CNPq (Edital Universal) - processo 474858/2009-0.
Conflito de interesses: não há.