DOI: S0100-7203(12)03400204 - volume 34 - Fevereiro 2012
Laura Helena França de Barros Bittencourt, Fabiana Maria Ruiz Lopes-Mori, Regina Mitsuka-Breganó, Marivone Valentim-Zabott, Roberta Lemos Freire, Simone Benghi Pinto, Italmar Teodorico Navarro
Introdução
Cerca de 90% das gestantes que adquirem toxoplasmose durante a gestação são assintomáticas. Assim, testes sorológicos devem ser realizados para detectar anticorpos anti-Toxoplasma gondii e confirmar a presença ou ausência da infecção1.
As mulheres que adquirem a primo-infecção da toxoplasmose durante a gestação apresentam parasitemia temporária, podendo desenvolver lesões focais na placenta e cerca de 40 a 50% podem transmitir o parasita ao feto pela via transplacentária2,3. A taxa de transmissão vertical depende da idade gestacional em que a mãe adquire a infecção, variando de 6% com 13ª semanas de gestação e podendo resultar em morte fetal; 40% com 26ª semanas; e 72% com 36ª semanas, podendo ocasionar hidrocefalia, calcificação intracraniana e coriorretinite2. Também tem sido observado déficit auditivo, em torno de 20%, nos casos de crianças não tratadas4. Crianças com infecção congênita podem ser assintomáticas ao nascimento e desenvolver tardiamente lesões oculares5. A transmissão congênita é rara em mulheres imunocompetentes cronicamente infectadas6, mas há relato de transmissão congênita em uma paciente com infecção crônica que sofreu reinfecção com cepa geneticamente diferente da infecção primária7.
A prevalência e a incidência da toxoplasmose em gestante variam muito de um país para o outro, e entre as regiões de um mesmo país8. O conhecimento da taxa de gestantes soronegativas e das características epidemiológicas de cada região é muito importante para planejar programas de prevenção e assistência pré-natal e neonatal da toxoplasmose9-11. No Brasil, alguns estudos evidenciaram diferentes prevalências da toxoplasmose em gestantes, como 31,0% em Caxias do Sul (RS), chegando a 91,6% no Mato Grosso do Sul12,13. No Estado do Paraná, em Londrina e Rolândia, a prevalência da toxoplasmose em gestantes foi avaliada em cerca de 50%. Nesses municípios, foi implantada, para as gestantes atendidas pelo sistema público de saúde, a triagem sorológica no pré-natal, com repetição de sorologia a cada trimestre de gestação nas suscetíveis14-16.
O presente trabalho teve como objetivo avaliar a suscetibilidade das gestantes à toxoplasmose e a vigilância dos recém-nascidos, além de observar algumas características epidemiológicas dessa zoonose em gestantes atendidas no serviço público de saúde dos municípios da região oeste do Paraná, após a implantação do Programa de Vigilância da Toxoplasmose Adquirida na Gestação e Congênita, em 200917.
Métodos
Estudo observacional transversal, de Julho de 2009 a Outubro de 2010, realizado em gestantes atendidas pelo serviço público de saúde dos municípios de Palotina e Jesuítas na região oeste do Estado do Paraná. Palotina conta com uma população de 28.609 habitantes18 e, em média, 400 gestantes são atendidas anualmente pelo serviço público de saúde. O município de Jesuítas, com 8.988 habitantes18, tem aproximadamente 60 gestantes atendidas, por ano, pelo mesmo serviço público de saúde. O tamanho da amostra foi calculado pelo programa Epi-Info 3.5.119, com prevalência esperada de 50,0%, erro padrão de 5% e nível de significância de 5%. O tamanho ideal foi de 226 gestantes em Palotina e 52 em Jesuítas.
O Programa de Vigilância da Toxoplasmose Adquirida na Gestação e Congênita17 foi implantado em Julho de 2009 no município de Palotina e em Setembro de 2009 no município de Jesuítas. Em março de 2009, foram realizadas oficinas de capacitação para treinamento das equipes das secretarias de saúde dos dois municípios sobre as ações do programa. O programa preconiza a pesquisa de IgG e IgM anti-T. gondii na primeira consulta do pré-natal, orientações sobre a prevenção em todas as consultas, monitoramento sorológico trimestral das gestantes suscetíveis, acompanhamento de gestantes e crianças com infecção aguda, e notificação de casos. No município de Jesuítas, além da triagem sorológica materna, foi implantada, em Janeiro de 2010, a pesquisa de anticorpos IgM em papel filtro em todos recém-nascidos. As amostras foram submetidas ao teste de fluorometria (NeoToxo IgM®, Labsystems FEIA, Helsinki, Finlândia).
No município de Palotina, no primeiro e terceiro trimestre de gestação, as avaliações de anticorpos IgG e IgM anti-T. gondii foram realizadas no Laboratório Central (LACEN) por meio das técnicas de ensaio imunoenzimático (ELISA - Dia.Pro®, Diagnostic Bioprobes, Milano, Italy) e ELISA de captura (Dia.Pro®, Diagnostic Bioprobes, Milano, Italy), respectivamente. No segundo trimestre, a avaliação foi realizada em laboratório conveniado ao serviço de saúde pela técnica de enzimaimunoensaio por micropartículas (Meia-Abbott®, Laboratories, Illinois, USA). Em Jesuítas as avaliações sorológicas foram realizadas, em laboratório conveniado ao serviço público de saúde, pela técnica MEIA (Abbott®) para determinar os níveis de anticorpos IgG e IgM nos três trimestres de gestação. No segundo e terceiro trimestre, a sorologia foi repetida para as gestantes soronegativas. Os resultados das sorologias foram analisados e interpretados por médicos e enfermeiros e, quando necessário, era solicitado auxílio de especialistas.
As gestantes com soropositividade de anticorpos IgG e IgM anti-T. gondii e <16ª semanas de gestação foram submetidas ao teste de avidez de IgG (Vidas Toxo IgG Avidity - Biomerieux®). As gestantes IgG e IgM soropositivas com idade gestacional superior a 16ª semanas foram encaminhadas ao hospital de referência e tratadas conforme preconizado pelo Programa de Vigilância da Toxoplasmose Adquirida na Gestação e Congênita17.
Após aceitarem participar da pesquisa e assinarem o termo de consentimento livre e esclarecido (Comitê de Ética em Pesquisa Envolvendo Seres Humanos da Universidade Estadual de Londrina - UEL, parecer 159/09), as gestantes responderam a um questionário epidemiológico contendo questões relacionadas às variáveis sociodemográficas, como local da residência (zona urbana ou rural), faixa etária, renda per capita, número de gestações, nível de escolaridade e consumo de água tratada; e a hábitos de comportamento e alimentares, como ingestão de carne crua ou mal cozida, salame colonial, e vegetais crus, presença de horta na residência, manuseio de terra e areia, e presença de gatos na residência.
Todas as gestantes, no início do pré-natal, receberam orientação sobre a toxoplasmose e as formas de prevenção por enfermeiras das Unidades Básicas de Saúde (UBS). Essas informações foram reforçadas com palestras nas reuniões mensais do grupo de gestantes. Como material de apoio, para prevenção da toxoplasmose, foram utilizados cartazes fixados nas UBS, folhetos usados pelas enfermeiras durante a orientação e, posteriormente, entregue as gestantes; um vídeo animação foi apresentado nas palestras.
Para análise estatística, foi considerada a variável dependente IgG anti-T. gondii reagente e as variáveis independentes, contidas no questionário epidemiológico, com a utilização do programa Epi-Info 3.5.119. Foi utilizado o teste do χ2, com correção de Yates ou exato de Fischer. A razão de chances (Odds Ratio - OR) foi utilizada como medida de associação entre a infecção pelo T. gondii e as variáveis pesquisadas, com intervalo de confiança (IC) de 95% e nível de significância de 5%.
Resultados
Foram incluídas 422 gestantes, 356 em Palotina e 66 em Jesuítas com idade entre 14,4 a 42,8 anos - média de 24,3 anos (±5,8), e de 16,8 a 38,4 anos - média de 25,3 anos (±6,1), respectivamente.
A soroprevalência de anticorpos IgG anti-T. gondii nas gestantes de Palotina foi de 59,8% (213/356) e 60,6% (40/66) em Jesuítas. A soroprevalência para IgM anti-T. gondii foi de 1,1% (4/356) no município Palotina e nenhuma gestante em Jesuítas. Das quatro gestantes com IgM anti-T. gondii, duas estavam no primeiro trimestre de gestação e foram submetidas ao teste de avidez-IgG; ambas apresentaram forte avidez, indicando infecção crônica. Dos 27 recém-nascidos avaliados na triagem neonatal, todos apresentaram IgM não reagentes, por isso não foi realizada sorologia dessas crianças.
Foi observado que 40,2 e 39,4% das gestantes investigadas eram soronegativas ao T. gondii, municípios de Palotina e Jesuítas respectivamente.
Houve associação entre sorologia positiva para toxoplasmose e menor nível de escolaridade das gestantes e maior número de gestações, no município de Palotina. Outras variáveis como, por exemplo, ser gestante residente na área rural e consumo de água tratada não apresentaram associação significativa à toxoplasmose (Tabela 1). Com relação aos hábitos alimentares e manuseio de solo, nenhuma das variáveis investigadas mostrou associação com a soropositividade IgG anti- T. gondii (Tabela 2).
Discussão
Os dois municípios onde o estudo foi desenvolvido apresentaram prevalência semelhante de sorologia positiva - em torno de 60,0%. A proximidade entre dois municípios (64 km) e a semelhança nas condições ambientais provavelmente não interferiram na prevalência da toxoplasmose. Com relação às características socioeconômicas e culturais, Palotina possui colonização italiana e alemã, índice de desenvolvimento humano (IDH) de 0,83 (o sétimo melhor do Estado), o produto interno bruto (PIB) é 822.245,310 milhões de reais e o PIB per capita 28.658,65 mil20. No município de Jesuítas, a colonização é de italianos, japoneses, portugueses e espanhóis, o IDH é 0,76 (121o do Estado), o PIB é de 100.331,151 milhões e o PIB per capita é 11.121,69 mil20. As diferenças étnicas, culturais e econômicas dos municípios não interferiram na prevalência da toxoplasmose.
No Paraná, foram observadas prevalências semelhantes, como 55,1% em Rolândia14 e 56,6% em Londrina, no norte do Estado21, bem como 56,4% na Bahia22, 67,3% em Porto Alegre (RS)23, 73,5% em Vitória (ES)24, 74,5% em Alto Uruguai (RS)25, 75,1% em Miracema (RJ)26 e 91,6% no Mato Grosso do Sul14. A grande extensão territorial e a diversidade sociocultural de nosso país justificam a observação de taxas diferentes de prevalência da toxoplasmose.
Quatro gestantes apresentaram anticorpos IgG e IgM anti-T. gondii. Sendo a prevalência de anticorpos IgM, no estudo, menor que 1,1%, resultado equivalente aos achados no Mato Grosso do Sul13, mas inferior a cidades do Estado do Paraná, Londrina e Rolândia, que apresentaram, em média, 2,0% de imunoglobulina M14,15, bem como no Estado do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2,6%27 e Caxias do Sul 2,8%12.
No município de Palotina, duas gestantes que iniciaram o pré-natal após 16 semanas de gestação e apresentaram anticorpos IgG e IgM anti-T. gondii, foram tratadas inicialmente com espiramicina e encaminhadas ao hospital de referência para acompanhamento. A sorologia dos recém-nascidos apresentaram IgG positivo e IgM negativo. As crianças foram monitoradas até a negativação do IgG, para confirmar a exclusão da infecção.
Nos municípios de Palotina e Jesuítas, com relação ao local de moradia (zona urbana ou rural), não houve associação com a infecção. Resultado diferente foi encontrado por outros pesquisadores, como Dias14 em Rolândia, Avelino et al.28 em Goiânia (GO), Spalding et al.25 na região do Alto Uruguai (RS). Nesses estudos, as gestantes procedentes da área rural apresentaram maior prevalência da infecção em relação às da área urbana.
Embora gestantes com idade superior a 21 anos foram mais expostas à infecção, não foi encontrada diferença com relação à faixa etária das mesmas em ambos os municípios. Em um estudo com 503 mulheres grávidas em Recife29, também não se encontraram diferenças entre idade e prevalência da toxoplasmose. Resultados diferentes foram observados em Rolândia e Caxias do Sul12,14, onde gestantes de faixa etária mais elevada apresentaram maior prevalência da toxoplasmose. Isso pode ser atribuído à maior exposição ao parasita no decorrer dos anos.
Um fato importante a ser destacado é que aproximadamente 40% das gestantes eram soronegativas. Isso evidencia a importância em intensificar as medidas de controle, como capacitação dos profissionais de saúde, facilidade de diagnóstico, terapêutica, entre outros, a fim de prevenir infecções congênitas. Em estudo de caso controle, em Goiânia, com 522 grávidas e 592 não grávidas, foi observado que as gestantes tinham 2,2 vezes mais a chance de se infectar com o parasita do que as não grávidas. Os pesquisadores sugeriram que a gestação pode ser considerada um fator de risco para a toxoplasmose. A superior vulnerabilidade ao parasita pelas gestantes pode ser atribuída a alterações imunológicas e hormonais que ocorrem durante a gestação30. Nesse estudo, as gestantes multíparas de Palotina apresentaram maior chance de infecção pelo T. gondii em relação as primigestas. O risco foi calculado em 1,9 vezes mais chance de adquirir a infecção.
As gestantes com até 8 anos de escolaridade apresentaram risco 1,8 vezes mais elevado de se infectarem que as demais, evidenciando que maior grau de instrução é um fator de proteção para a infecção pelo T. gondii. Esse dado identifica a importância de investimento em educação, o que é apoiado por outros autores14,24,28,29,31,32,pois se trata de um fator importante para a prevenção da infecção e promoção da saúde. A não ocorrência de soroconversão das gestantes pode ser atribuída às medidas de educação em saúde implantadas e operacionalizadas durante o período gestacional. Não foi encontrada associação entre a toxoplasmose e os diferentes hábitos de comportamento, como ingestão de carnes cruas ou mal cozidas, ingestão de vegetais crus, ingestão de salames coloniais, manipulação de terra ou areia, presença de horta em casa, presença de gatos em casa, provavelmente pela efetividade da implantação do Programa de Vigilância da Toxoplasmose Adquirida na Gestação e Congênita, a partir de 2009, acompanhados por especialistas. Higa et al.33, apesar de terem observado o hábito de ingestão de leite cru pelas gestantes e do contato com gatos durante a fase adulta, também não encontraram associação com carnes cruas ou mal cozidas. No município de Jesuítas também foi implantado o teste do pezinho, sendo um dos poucos municípios brasileiros que realizam a triagem pré-natal e a neonatal.
Por se tratar de um estudo de prevalência, os fatores estudados foram associados à presença de anticorpos IgG anti-T. gondii. Como esses anticorpos permanecem presentes anos após a infecção, estas variáveis de comportamento e hábitos podem ter sido alteradas. O estudo ideal para analisar os fatores de risco à infecção é o de coortes; no entanto, pelo fato de se tratar de uma doença de baixa incidência na gestação aliado ao alto custo, esse delineamento foi impossibilitado. Apesar disso, o conhecimento das características epidemiológicas da toxoplasmose, em cada região, é de extrema importância para traçar programas de controle adequados a cada realidade.
Os serviços de saúde de Palotina e Jesuítas utilizaram metodologias diferentes para detecção de anticorpos IgG e IgM anti-T. gondii, mas as duas técnicas são utilizadas nos laboratórios de rotina para o diagnóstico da toxoplasmose e apresentam alta sensibilidade e especificidade34.
Os resultados permitem concluir que a infecção pelo T. gondii é comum nos municípios avaliados; no entanto, cerca de 40% das gestantes são soronegativas e apresentam risco para transmissão fetal. Assim, as medidas preventivas adotadas no serviço público de saúde devem ser mantidas nesses municípios.
Recebido 02/08/2011
Aceito com modificações 19/12/2011
Trabalho realizado na Universidade Estadual de Londrina - UEL - Londrina (PR), Brasil; Universidade Federal do Paraná - UFPR - Palotina (PR), Brasil.