DOI: S0100-7203(13)03500200003 - volume 35 - Fevereiro 2013
Roseli Mieko Yamamoto Nomura, Marina Vilela Chagas Ferreira, Ibrahim Omar Abdel Latif, Rossana Pulcineli Vieira Francisco, Marcelo Zugaib
Introdução
Os movimentos fetais (MF) são de grande importância para a vigilância do bem-estar fetal1e constituem um dos métodos mais antigos utilizado na sinalização da condição fetal no período anteparto2. A redução da movimentação fetal associa-se a maior risco de prematuridade, baixo peso do recém-nascido, ou mesmo de morte fetal no período anteparto3-5. Portanto, a queixa de diminuição da movimentação fetal é um dos primeiros sinais clínicos de comprometimento da vitalidade do produto conceptual.
A percepção materna dos MF inicia-se por volta da 16ª - 20ª semana, mas a frequência de MF não é constante durante toda a gravidez. A gestante pode mensurar regularmente os MF, o que seria uma importante ferramenta para avaliar a vitalidade fetal e detectar precocemente qualquer problema que necessite de intervenção. Kuwata et al.6 relatam estudo sobre o intervalo de tempo que 705 pacientes levam para contabilizar 10 MF (método "count to 10 modificado"), e verificam que isso ocorre em 10 a 15 minutos.
Muitos estudos abordam a redução da mortalidade fetal quando são aplicados programas que orientam as gestantes sobre a importância da vigilância dos MF7. Entretanto, há controvérsias na literatura acerca de sua aplicabilidade. Os estudos são conflitantes e alguns não demonstram benefícios quando são aplicados protocolos de contagem de MF8. Frøen et al.9 ressaltam que apesar de a percepção de MF estar associada com melhores resultados perinatais, a busca de um "limite de alarme", para definir diminuição dos MF, tem sido até agora mal-sucedida. Durante a contagem de movimentos fetais pode ocorrer grande número de falsos-positivos ou falsos-negativos10,11. Nesse sentido, o conhecimento da confidencialidade da percepção materna dos MF torna-se relevante. O presente estudo, realizado em gestantes de baixo risco, sem morbidade, teve como objetivo verificar a concordância entre a percepção materna dos MF e o movimento constatado simultaneamente pela ultrassonografia.
Métodos
Este trabalho foi realizado em hospital universitário e a população incluída foi selecionada entre gestantes de baixo risco, acompanhadas no Ambulatório da Liga de Pré-natal da Clínica Obstétrica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, no período compreendido entre abril de 2011 e agosto de 2012. Foram convidadas 20 gestantes e todas consentiram em participar da pesquisa. O estudo foi do tipo prospectivo e transversal. O projeto de pesquisa e o termo de consentimento livre e esclarecido foram aprovados pela Comissão de Ética em Pesquisa do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - CAPPesq, sob o número 193/11.
Foram utilizados os seguintes critérios de inclusão: idade materna entre 18 e 35 anos, gestação única, feto vivo, com idade gestacional entre 36 e 40 semanas completas, ausência de intercorrências clínicas ou obstétricas, ultrassonografia morfológica fetal normal e concordância formal da paciente em participar do estudo. Foi utilizado como critério de exclusão o diagnóstico pós-natal de anomalia fetal. Todas as pacientes incluídas foram submetidas à avaliação sob as mesmas condições. Foram avaliadas na sala de exames de vitalidade fetal, no horário entre 12h00 e 15h00, em posição semissentada e após consulta de rotina no pré-natal. A idade gestacional foi calculada a partir da data da última menstruação (DUM), quando compatível com a idade gestacional estimada pela ultrassonografia realizada, no máximo, até a vigésima semana de gestação. Nos casos em que não foi observada tal concordância, a idade gestacional foi calculada pelos dados da primeira ultrassonografia (USG).
A percepção materna dos MF foi avaliada utilizando-se o aparelho de cardiotocografia (marca Philips HP50A). Os transdutores de detecção dos batimentos cardíacos fetais e das contrações uterinas não foram utilizados. Foi empregado apenas o marcador de eventos, que, quando acionado, registra no papel cardiotocográfico uma marca específica. Esse dispositivo foi utilizado para que a gestante pudesse indicar objetivamente o MF percebido, sem que o operador do aparelho de USG tivesse conhecimento. A velocidade do papel de registro da cardiotocografia foi ajustada para 3 cm/min. A observação ultrassonográfica dos MF foi realizada com aparelho da marca Toshiba (modelo Corevision), com transdutor de 3,5 MHz, posicionado na parede abdominal materna de forma a incluir o tronco fetal e pelo menos um dos membros. Durante o período de 10 minutos foi solicitado que a gestante registrasse os MF percebidos, e, simultaneamente, foi realizada a observação pela USG. O horário do início do período de observação foi marcado no papel da cardiotocografia e pelo registro do horário em uma primeira fotografia impressa de USG. A cada MF percebido, a gestante foi instruída a acionar o botão "marcador de eventos". Posteriormente, essas marcações foram confrontadas com a observação ultrassonográfica dos MF, que foram registrados pelo operador do equipamento de ultrassom na forma de fotografias impressas. Todos os exames foram realizados exclusivamente por uma pesquisadora (M.V.C.F.), sob supervisão de R.M.Y.N.
Foram comparados os movimentos observados pela gestante e os detectados pelo operador do aparelho de ultrassonografia, cotejando o horário em que ocorreram. Comparou-se o número total de MF indicados pela gestante com os observados com a USG, bem como a concordância da observação dos MF (foram considerados concordantes movimentos indicados com diferença de até 20 segundos).
Foram analisados os exames de 20 gestantes. Na Tabela 1 estão apresentadas as informações referentes à caracterização dessas pacientes. Os resultados foram analisados utilizando-se o programa Medcalc versão 11.5.1.0 (Medcalc Software, Bélgica). As variáveis foram analisadas descritivamente, calculando-se frequências absolutas e relativas. A concordância da percepção materna e ultrassonográfica de MF foi avaliada pela análise de concordância interobservador kappa de Cohen, que mede o grau de concordância além do que seria esperado tão somente pelo acaso, e varia entre 0 e 1. Os valores próximos a 0 significam que a medida é atribuível apenas ao acaso, e valores próximos a 1 sugerem maior confiabilidade. A interpretação do grau de concordância da estatística kappa foi feita da seguinte maneira: nenhuma concordância, abaixo de zero; pobre, de 0 a 0,20; fraca, 0,21 a 0,40; satisfatória, de 0,41 a 0,60; boa, de 0,61 a 0,80; muito boa, de 0,81 a 0,92, e excelente, de 0,93 a 1,0012. Foi utilizado também como método de comparação o gráfico de Bland & Altman, usado para mensuração de variáveis clínicas e que permite a avaliação do padrão de concordância ou discordância entre medidas repetidas12. O nível de significância utilizado para os testes foi de p<0,05.
Resultados
Os resultados do número de MF percebidos pela gestante e os observados na USG estão apresentados na Tabela 2. Nota-se que nem todos os movimentos são detectados simultaneamente. A análise de concordância interobservador pela análise de kappa obteve o índice de 0,62, caracterizando boa concordância, com desvio padrão de 0,08 e IC95% 0,45 - 0,79.
O coeficiente de correlação intraclasse entre a percepção de movimentos fetais da gestante e a percepção ultrassonográfica foi de 0,82 (IC95% 0,61 - 0,92). O resultado da análise pelo método de Bland & Altman está apresentado na Figura 1. No eixo das abscissas (x) encontra-se a média dos MF percebidos pela gestante e pela USG, e no eixo das ordenadas (y) exibe-se a diferença entre os movimentos percebidos pela USG e pela gestante. A disposição dos pontos nos valores próximos a zero (0) indica uma boa concordância entre as percepções materna e ultrassonográfica dos MF, sem subestimação ou superestimação de nenhuma delas.
A análise de concordância pela regressão demonstrou correlação significativa entre a percepção materna e a observação pela USG. A Figura 2 demonstra a regressão linear do número de movimentos fetais detectados pela percepção materna (x) e pela USG (y), em período de 10 minutos de observação (r2=0,71; p<0,001; equação: y=5,31+0,66x).
Discussão
Com os resultados obtidos, o presente estudo sugere que é boa a concordância da percepção materna e ultrassonográfica dos movimentos fetais. Isso dá suporte para o uso do método de contagem materna dos movimentos fetais também em gestantes de baixo risco para avaliação contínua de bem-estar fetal em ambiente domiciliar. A confiabilidade da informação materna é aspecto relevante no cuidado pré-natal e a percepção materna dos movimentos fetais tem sido reconhecida como importante componente da assistência à saúde materno-fetal13.
Grande parte dos estudos envolvendo os MF e vitalidade fetal foi efetuada nas décadas de 1970 e 1980, época em que a contagem pela gestante foi muito estudada por ser técnica simples, de baixo custo e com grande aplicabilidade. Em revisão da literatura, foram analisados 24 estudos sobre a contagem de MF e verificou-se que a maioria deles foi realizada até a década de 198014. A partir dessa época, com o desenvolvimento de novas tecnologias para avaliação fetal, tais como a cardiotocografia e perfil biofísico fetal, houve redução do interesse pelo tema.
Em estudo randomizado publicado em 19898, foram avaliados 68.654 grávidas e não se demonstrou diferença significativa na prevenção de mortes fetais tardias, potencialmente evitáveis, entre gestantes instruídas a realizar contagem rotineira dos MF em relação ao Grupo Controle. No entanto, nota-se que a média do tempo relatado para contagem de 10 MF foi de 162 minutos, o que difere do tempo relatado em estudo mais recente (10 a 15 minutos)6. Além disso, o protocolo adotado para as mulheres com MF reduzidos não foi bem padronizado, havendo certa intersecção entre os grupos controle e experimental e não houve coleta de dados de morbidade perinatal.
Desde a década de 1970, autores relacionam a parada de movimentos fetais ou período de 12 horas com contagem abaixo de 10 MF com maior incidência de óbito perinatal1,3. Além da mortalidade, a morbidade dos fetos com contagem de MF diminuídos também é maior, com presença de anormalidades na cardiotocografia, oligoâmnio, menores índices de Apgar e presença de mecônio no líquido amniótico15,16.
Nos últimos anos esse tema voltou a ser avaliado pela comunidade científica, estando estabelecido atualmente que a contagem de MF pode ser proposta como método de avaliação do bem-estar fetal. Autores concordam que as gestantes devem ser orientadas a respeito da contagem diária de MF2,5,17, para melhor identificação de fetos com crescimento restrito e menor incidência de neonatos com baixo escore de Apgar5. Entretanto, em revisão de literatura, não são encontrados estudos suficientes abordando a diminuição de movimentos fetais percebida pela gestante e suas consequências clínicas18.
Apesar de os métodos frequentemente utilizados para a avaliação da vitalidade fetal - cardiotocografia e perfil biofísico fetal - serem mais objetivos e precisos, necessitam de equipamentos de alta tecnologia para sua execução. Considerando-se a simplicidade e o baixo custo da contagem de MF, bem como pelo fato de prescindir de alta tecnologia e por ser acessível a qualquer mulher, sua implementação seria de grande interesse para o desenvolvimento de ações de saúde na área de atenção primária. A Society of Obstetrics and Gynaecologists of Canada19 recomenda, para gestações de alto risco, a monitorização diária dos movimentos fetais, a partir da 26ª semana. Para as gestantes saudáveis sem fatores de risco, a recomendação é de que sejam alertadas sobre a importância da movimentação fetal no terceiro trimestre e orientadas a realizar a contagem dos MF caso percebam redução. No Brasil, o Ministério da Saúde20 sugere método de contagem de MF para gestantes acompanhadas na Atenção Primária, em que, após a 34ª semana gestacional, seis MF devem ser percebidos até uma hora de observação, com repetição da contagem na hora seguinte, se necessário. Por ser de fácil aplicação, trata-se de orientação interessante para gestantes de baixo risco.
A avaliação da percepção materna dos MF em estudos anteriores demonstra concordância total de 37% entre o que é efetivamente observado ao exame ultrassonográfico11, com 30% de falsos-positivos causados por contrações uterinas, movimentos respiratórios ou sem motivos aparentes. No entanto, para movimentos grosseiros e vigorosos, a concordância é de 71% e o estudo não identifica associação com fatores como obesidade, localização da placenta ou idade materna.
Em estudo que avalia a percepção materna dos MF, verifica-se concordância de 33% quando confrontados com a verificação por meio de dois transdutores de ultrassonografia10. Os autores observam que 63% dos movimentos combinados são efetivamente percebidos, sem associação com a parte fetal envolvida (cabeça, tronco ou membros), duração do movimento, paridade, idade gestacional, localização da placenta ou obesidade. Para investigar a influência da duração dos MF na percepção materna, é realizada avaliação com o tocodinamômetro do aparelho de cardiotocografia e com a ultrassonografia, sendo constatada concordância de 71,2% com a ultrassonografia e de 83% para movimentos com mais de três segundos de duração14.
Não existe definição sobre o número ideal de movimentos fetais a ser utilizado em métodos de contagem, nem da sua duração para fins de vigilância do bem-estar fetal. No entanto, estudo recente demonstra que informações escritas oferecidas às gestantes sobre a importância da redução da movimentação fetal, e o estímulo ao controle desse parâmetro, promoveram melhor conduta e estão associadas a menor ocorrência de óbito fetal7.
Em conclusão, a concordância entre a percepção materna e ultrassonográfica dos MF é boa, o que permite a utilização de ferramentas de controle do bem-estar fetal baseadas nas informações maternas, como, por exemplo, o mobilograma. No Brasil, que apresenta grande demanda da população carente, a validação de um método simples, barato e disponível para todas as gestantes é de extrema importância. A boa confiabilidade da percepção materna dos MF favorece a utilização da contagem dos MF na área da atenção primária à saúde materno-fetal.
Agradecimento
À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) pelas bolsas de iniciação científica concedidas aos alunos Marina Vilela Chagas Ferreira e Ibrahim Omar Abdel Latif.
Recebido 23/10/2012
Aceito com modificações 26/11/2012
Trabalho realizado na disciplina de Obstetrícia, Departamento de Obstetrícia e Ginecologia da Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo - USP - São Paulo (SP), Brasil.