DOI: S0100-7203(13)03500600005 - volume 35 - Junho 2013
Monica Tessmann Zomer, Reitan Ribeiro, Carlos Henrique Trippia, Teresa Cristina Santos Cavalcanti, Renata Mieko Hayashi, William Kondo
Introdução
O antígeno do câncer 125 é uma proteína (antígeno de superfície da célula, membro da família das glicoproteínas mucinas, codificada pelo gene MUC 16) conhecida desde os anos 801. Ele serve como um marcador biológico do câncer de ovário2, mas outras neoplasias também podem apresentar elevação do Ca-125, entre eles os originários no endométrio, trompas, pulmões, mama e trato gastrointestinal. Em mulheres normais, as concentrações plasmáticas do Ca-125 estão um pouco mais elevadas na ovulação e significativamente mais elevadas durante a menstruação3.
Os níveis séricos de Ca-125 também podem estar elevados em mulheres com endometriose, notadamente nas formas moderada e severa da doença, na presença de endometriomas ovarianos e/ou lesões de endometriose profunda4. A endometriose pode estar associada a sintomas dolorosos pélvicos e/ou problemas de fertilidade5 e pode se apresentar como doença superficial peritonial, endometrioma ovariano e doença profunda infiltrativa, isoladamente ou em uma combinação.
Vários marcadores biológicos têm sido estudados com o intuito de possibilitar o diagnóstico pré-operatório da doença, mas os achados são pouco animadores no que tange a doença superficial peritonial. De acordo com uma meta-análise de 23 estudos comparando os níveis séricos de Ca-125 e a presença de endometriose confirmada laparoscopicamente, a curva ROC (Receiver Operating Characteristics) revelou uma pobre performance diagnóstica desse teste. A medida do Ca-125 foi um pouco melhor como teste de rastreamento para o diagnóstico de endometriose moderada e severa. Para uma especificidade de 89%, a curva ROC mostrou uma sensibilidade de 47%, e o aumento da sensibilidade para 60% foi associado a uma queda na especificidade para 81%6.
Como a doença profunda é a forma mais agressiva da doença, de difícil diagnóstico e de tratamento complexo, o rastreamento dessa forma específica da doença por meio de um marcador biológico sérico poderia ajudar na triagem das pacientes que merecem uma investigação pré-operatória mais aprofundada e eventualmente o encaminhamento a centros de referência para diagnóstico e tratamento. O objetivo deste trabalho é correlacionar os achados laparoscópicos com os níveis pré-operatórios séricos do Ca-125 em mulheres submetidas à cirurgia para investigação e tratamento de sintomas dolorosos pélvicos sugestivos de endometriose.
Métodos
Foi realizada uma análise retrospectiva de mulheres portadoras de endometriose operadas por um único ginecologista em um serviço privado no Sul do Brasil, durante o período de janeiro de 2010 a março de 2013. O trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética do Hospital Vita Batel e do Centro Médico-Hospitalar Sugisawa, e o termo de consentimento livre e esclarecido foi obtido de todas as pacientes no momento da indicação do procedimento cirúrgico.
Todas as mulheres submetidas à cirurgia laparoscópica para investigação e tratamento de sintomas dolorosos sugestivos de endometriose (dismenorreia, dispareunia, dor pélvica crônica, sintomas urinários cíclicos e/ou sintomas intestinais cíclicos), com diagnóstico comprovado histologicamente, foram incluídas no estudo.
Além da anamnese e do exame físico, a avaliação pré-operatória das pacientes incluiu a dosagem sérica do Ca-125 (valor de referência <35 U/mL) e o rastreamento da doença por meio de exames de imagem (ultrassonografia pélvica transvaginal e/ou ressonância nuclear magnética de pelve).
Durante o procedimento cirúrgico, foram avaliadas a presença de endometrioma ovariano, de lesões sugestivas de endometriose superficial e de EPI. As lesões de EPI foram classificadas em oito localizações principais: ligamento redondo, serosa uterina anterior/reflexão peritonial vésico-uterina, bexiga, ligamento uterossacro, região retrocervical, vagina, intestino e ureter, de acordo com classificação previamente descrita na literatura7. A cirurgia foi realizada com o intuito de remover completamente a doença. O diagnóstico de endometriose em cada local foi confirmado pela presença de glândulas e estroma endometriais no estudo histológico das peças cirúrgicas. Os achados intra e pós-operatórios foram coletados prospectivamente e armazenados em um banco de dados.
As pacientes foram divididas em 2 grupos de acordo com o valor sérico do Ca-125 pré-operatório: <35 U/mL e >35 U/mL. Os parâmetros comparados entre os grupos incluíram: idade, índice de massa corporal (IMC), dosagem sérica de Ca-125, presença de endometrioma, presença e número de lesões profundas, sangramento intraoperatório, tempo cirúrgico, escore da American Society for Reproductive Medicine8 e tempo de permanência hospitalar. Como se sabe que o aumento do Ca-125 está correlacionado com a presença de endometrioma ovariano e esta é uma lesão facilmente visualizada no exame de imagem pré-operatório, em uma segunda análise foram excluídas as pacientes portadoras de endometriomas ovarianos, e novamente os mesmo parâmetros foram comparados para os 2 grupos, divididos de acordo com o valor sérico do Ca-125 pré-operatório: <35 U/mL e >35 U/mL.
A análise estatística foi conduzida com o programa Statistica versão 8.0. As variáveis qualitativas foram comparadas utilizando-se o teste exato de Fisher. O teste de Kolmogorov-Smirnov foi aplicado para testar a normalidade da distribuição nas variáveis quantitativas. As variáveis com distribuição normal foram testadas utilizando-se o teste t de Student. As variáveis sem distribuição normal foram analisadas pelo teste de Mann-Whitney. Os valores p<0,05 foram considerados estatisticamente significativos. As variáveis com distribuição normal foram expressas como média ± desvio padrão. As variáveis sem distribuição normal foram expressas como mediana (variação mínimo-máximo).
Resultados
Durante o período de estudo, 350 pacientes foram submetidas a tratamento cirúrgico laparoscópico de endometriose. A média de idade das pacientes na amostra foi de 34,8±7,0 anos (15-52 anos), e o IMC mediano foi de 24 kg/m2 (18-35,5 kg/m2). Noventa e sete pacientes (27,7%) eram portadoras de endometrioma ovariano, e 296 pacientes (84,6%) apresentaram EPI confirmada histologicamente.
A Tabela 1 mostra a comparação entre as mulheres portadoras de endometriose com Ca-125 <35 U/mL e >35 U/mL. Não houve diferença entre os grupos estudados no que diz respeito a idade mediana (34,5 versus 35,4 anos; p=0,2) e IMC mediano (24 versus 24 kg/m2; p=0,5). No entanto, na presença de dosagem sérica de Ca-125 pré-operatória >35 U/mL observou-se maior frequência de endometriomas ovarianos (47,7 versus 15,9%; p<0,01) e de formas mais severas da doença, de acordo com o escore da AFSr (34 versus 6 p<0,01). Lesões de EPI estavam presentes em 94,6% (IC95% 89,3-97,4%) das mulheres com Ca-125 >35 U/mL e em 78,6% (IC95% 72,7-83,5%) das mulheres com Ca-125 <35 U/mL [odds ratio = 4,8 (IC95% 2,1-10,9)]. Entre as lesões de EPI, houve maior incidência de lesões acometendo o intestino (60 versus 30,9%; p<0,01), a bexiga (12,3 versus 4,5%; p<0,01) e o ureter (7,7 versus 2,3%; p<0,01) nas mulheres portadoras de Ca-125 elevado no pré-operatório. Consequentemente, também se observou maior perda sanguínea intraoperatória (80 versus 50 mL; p<0,01) e maior tempo cirúrgico (125 versus 70 min; p<0,01), decorrente da maior dificuldade do procedimento cirúrgico nesses casos.
A Tabela 2 mostra os resultados da comparação dos 2 grupos (Ca-125 <35 U/mL e >35 U/mL) de mulheres portadoras de endometriose, excluindo-se aquelas com endometriomas ovarianos. A idade das mulheres com Ca-125 >35 U/mL foi superior à daquelas com Ca-125 <35 U/mL (36,4 versus 34,1 anos; p=0,02). Foi observado que na presença de Ca-125 >35 U/mL houve incidência maior de lesões de EPI [frequência e número de lesões (5 versus 2 lesões; p<0,01)], que estavam presentes em 91,2% (IC95% 82,1-95,9%) das mulheres com Ca-125 >35 U/mL e em 76,2% (IC95% 69,6-81,8%) das mulheres com Ca-125 <35 U/mL [odds ratio=3,2 (IC95% 1,3-8)]. Novamente, identificou-se maior incidência de comprometimento intestinal (63,2 versus 25,4%; p<0,01), de comprometimento de trato urinário [bexiga (20,6 versus 4,8%; p<0,01) e ureter (7,3 versus 1,6%; p<0,01)] e de formas mais severas da doença pelo escore da AFSr (10 versus 6; p<0,01) na presença de Ca-125 no pré-operatório >35 U/mL. Também foi observado maior tempo cirúrgico (120 versus 70 min; p<0,01) e maior perda sanguínea intraoperatória neste grupo de pacientes.
Discussão
Neste artigo, confirmamos que em uma amostra de mulheres com sintomas sugestivos de endometriose submetidas a tratamento cirúrgico laparoscópico, a presença de níveis séricos elevados de Ca-125 elevada no pré-operatório está fortemente relacionada à presença de formas mais severas da doença, de endometrioma ovariano e de EPI. As mulheres com Ca-125 >35 U/mL apresentaram uma chance 4,8 vezes maior de ter uma lesão de EPI do que as mulheres com Ca-125 <35 U/mL. Quando as mulheres portadoras de endometriomas ovarianos foram excluídas da análise estatística, a chance de as mulheres com Ca-125 >35 U/mL apresentarem uma lesão de EPI foi 3,2 vezes maior do que as mulheres com Ca-125 <35 U/mL.
Nenhum exame biológico é necessário para o diagnóstico clínico de endometriose. O aumento do Ca-125 está relacionado aos endometriomas ovarianos e ao volume das lesões profundas4,9-12. Portanto, a presença de uma dosagem elevada de Ca-125 sérica em uma paciente jovem com clínica de endometriose aumenta a suspeita para a doença, mas o seu valor normal não exclui esse diagnóstico. Após a excisão cirúrgica da endometriose, o Ca-125 pode ainda ser utilizado para monitorar a ressecção cirúrgica completa e a eventual recidiva da doença9,10,13.
Em 2004, um estudo sugeriu14 que talvez se pudesse realizar o diagnóstico clínico de endometriose por meio da avaliação das diferenças nos níveis de Ca-125 durante o período menstrual comparado com o restante do ciclo menstrual. Observou-se um aumento de 22% nas concentrações séricas de Ca-125 durante o período menstrual (12,2 U/mL) comparado com o restante do ciclo menstrual (10 U/mL) no grupo controle. Esse aumento também foi observado nas mulheres com endometriose, mas os níveis variaram em 198,3%. As concentrações de Ca-125 nas pacientes portadoras de endometriose durante o período menstrual e no restante do ciclo menstrual foram 35,8 e 12 U/mL, respectivamente.
Um outro estudo15 avaliou o significado clínico do Ca-125 pré-operatório em mulheres com diagnóstico cirúrgico de endometriose, adenomiose, leiomioma ou pelve normal. Foram estabelecidos 2 pontos de corte para os valores do Ca-125: 20 U/mL e 30 U/mL. O valor preditivo positivo do teste no grupo de mulheres com diagnóstico de endometriose sem endometrioma ovariano foi de 92,9% quando o Ca-125 estava >30 U/mL. Por outro lado, o valor preditivo negativo do exame foi de 78% quando o Ca-125 estava <20 U/mL. Quando os níveis do Ca-125 se encontraram entre 20 e 30 U/mL, a performance diagnóstica do teste foi limitada.
Outros autores16 sugerem que a realização de um painel de 6 marcadores plasmáticos (interleucina 6, interleucina 8, fator de necrose tumoral alfa, proteína C de alta sensibilidade, Ca-125 e Ca-19-9) em amostras obtidas durante a fase secretória ou durante a menstruação permitem o diagnóstico tanto de endometriose mínima e leve quanto de moderada a severa, com alta sensibilidade e especificidade clinicamente aceitável.
Mais recentemente, 28 biomarcadores plasmáticos inflamatórios e não inflamatórios foram avaliados em mulheres com e sem endometriose submetidas a procedimento cirúrgico laparoscópico17, sendo observado que nas amostras plasmáticas obtidas durante o período menstrual, 4 biomarcadores [anexina V, VEGF (fator de crescimento vascular endotelial), Ca-125 e sICAM-1 (molécula de adesão intercelular solúvel-1) ou glicodelina] permitiram o diagnóstico de endometriose indetectável na ultra-sonografia com uma sensibilidade de 81 a 90% e especificidade de 63 a 81%.
O presente estudo confirma os achados dos estudos supracitados, mostrando uma correlação importante dos níveis elevados de Ca-125 (>35 U/mL) em mulheres portadoras de sintomas sugestivos de endometriose com a presença de endometrioma ovariano e formas severas da doença. A importância dos achados deste estudo diz respeito à correlação entre a dosagem pré-operatória elevada de Ca-125 (>35 U/mL) e a presença de EPI, quando o exame de imagem pré-operatório não identifica endometriose ovariana. Diante dessas descobertas, é importante considerar na avaliação pré-operatória de mulheres com sintomas de endometriose, quando o Ca-125 está elevado e o exame de imagem não mostra cisto endometriótico ovariano, que existe uma grande probabilidade de se tratar de um caso de EPI. Nesse caso, recomenda-se a realização de um mapeamento completo da doença por meio de exames de imagem (ultrassonografia e/RNM)18 com profissional experiente para tal diagnóstico, uma vez que os resultados da ultrassonografia são operador-dependentes e a RNM de pelve necessita de um protocolo específico para o diagnóstico de lesões de EPI, notadamente quando elas são pequenas.
A importância do diagnóstico pré-operatório de EPI já está bem definida na literatura, uma vez que o procedimento cirúrgico para o seu tratamento é muitas vezes complexo, principalmente quando há acometimento de trato urinário e/ou gastrointestinal. O objetivo do tratamento cirúrgico da EPI é a remoção completa da doença em um procedimento cirúrgico único5. Portanto, atualmente não se aceita a indicação de uma laparoscopia diagnóstica para biópsia das lesões quando se tem uma confirmação pré-operatória de EPI nos exames de imagem. As pacientes com formas graves da doença acometendo sítios extra-ginecológicos devem ser bem conduzidas cirurgicamente na primeira intervenção cirúrgica, a fim de minimizar a taxa de cirurgias incompletas que culminam com taxas elevadas de reoperações. A equipe cirúrgica deve ser bem treinada e ter experiência no tratamento dessas pacientes, uma vez que a cirurgia conservadora de fertilidade é o principal objetivo na maioria das vezes.
Os pontos fortes do nosso estudo incluem a coleta prospectiva dos dados (apesar de a análise ter sido realizada retrospectivamente) e o fato de todos os procedimentos terem sido realizados pelo mesmo cirurgião, o que favorece a padronização da técnica cirúrgica e dos dados coletados. A grande limitação desta pesquisa é que se trata de uma amostra com viés, pois 84,6% de todas as pacientes operadas em decorrência de dor pélvica crônica eram portadoras de EPI (o esperado seria algo em torno de 33%19). No entanto, mesmo com essa amostra tendenciosa, houve diferença significativa em vários parâmetros avaliados quando se comparou o grupo de pacientes com Ca-125 normal (<35 U/mL) e aumentado (>35 U/mL).
Em conclusão, nosso estudo mostra que a presença de dosagem sérica elevada de Ca-125 (>35 U/mL) em uma mulher com sintomas dolorosos sugestivos de endometriose tem uma correlação muito grande com a presença de lesões de EPI, especialmente se não houver evidência ultrassonográfica de endometrioma ovariano. Portanto, é recomendável que se realize um rastreamento pré-operatório por imagem adequado quando tal achado estiver presente.
Recebido: 30/05/2013
Aceito com modificações: 10/06/2013
Conflito de interesse: não há.
Trabalho realizado no Hospital Vita Batel e no Centro Médico-Hospitalar Sugisawa - Curitiba (PR), Brasil.