DOI: 10.1590/S0100-720320140004827 - volume 36 - Junho 2014
Leda Maria Delmondes, Mário Augusto Ferreira Cruz, Matheus Kummer Hora Guimarães, Luan Garcez Santana, Valma Passos Chagas Gonçalves, Hugo Leite de Farias Brito
Esquistossomoses são enfermidades parasitárias produzidas por trematódeos do gênero Schistosoma, sendo S. Haematobium, S. mansoni, S. intercalatum, S. Japonicum e S. mekongi os principais agentes etiológicos que acometem o homem. Mais de 200 milhões de pessoas estão infectadas na África, Ásia e América do Sul, e perto de 800 milhões estão em risco de infeção1. A esquistossomose é prevalente em áreas tropicais e subtropicais, especialmente em locais sem acesso ao saneamento adequado. No Brasil, a esquistossomose mansônica foi identificada em 1908, sendo a espécie S. mansoni a mais comum e o único schistossoma com transmissão estabelecida no Brasil. Estima-se que, no Brasil, 25 milhões de pessoas vivam em áreas endêmicas2.
A transmissão do S. mansoni ocorre em 19 Estados brasileiros, é considerada endêmica em 9 deles e contribui para o ciclo da pobreza2. No Estado de Sergipe são detectados altos índices de positividade dessa infecção3. A distribuição geográfica da endemia nos Estados da Bahia, Sergipe e Alagoas atinge 68% do território, e em Pernambuco atinge em torno de 39%. Entre 2005 e 2010, o Brasil realizou inquérito coprológico que revelou que, das 10.783.144 pessoas examinadas, 647.861 eram portadoras da infecção pelo S. mansoni4-6.
A infecção por S. mansoni inclui uma variedade de manifestações clínicas e tem apresentação polimórfica, sendo a forma hepatointestinal a mais frequente. A resposta imune aos ovos de Schistosoma spp aprisionado em tecidos humanos provoca doença hepatoesplênica e fibrose hepática (S. mansoni e S. japonicum), além de resposta inflamatória no trato geniturinário (S. haematobium). São consideradas formas ectópicas quando o elemento parasitário - ovos ou vermes adultos - se localiza fora do sistema porto-cava. Órgãos como pulmões, pâncreas, rins, linfonodos, tireoide, coração, assim como o sistema nervoso central, o sistema urinário e o trato genital feminino (colo uterino, corpo uterino, vagina, vulva, clitóris, uretra, ovário e tuba uterina) podem conter ovos do helminto7-12.
A esquistossomose do trato genital feminino é uma forma rara de infecção pelo S. mansoni, sendo que o S. haematobium acomete o trato genital feminino em torno de 33 a 73% dessas situações13.
A contaminação do homem se inicia quando as cercárias infectadas, que foram liberadas pelos caramujos do gênero Biomphalaria, penetram na pele no momento da exposição à água contaminada. No tecido subcutâneo, as cercárias se transformam em esquistossômulos e, em dois a quatro dias, migram para os vasos venosos ou linfáticos, alcançando os pulmões, e por último o parênquima hepático. Quando os vermes maturam sexualmente, migram para locais específicos, como o plexo venoso mesentérico e as veias vesicais, ondem podem viver por cinco a dez anos. Depois que a cópula acontece, as fêmeas grávidas seguem contra o fluxo da corrente sanguínea, depositando seus ovos dentro do espaço intravascular dos pequenos vasos tributários7. A patogênese da esquistossomose mansoni depende da interação parasita-hospedeiro e está relacionada com os locais de oviposição, número de ovos depositados e reação do hospedeiro aos seus antígenos14. A resposta imunitária do hospedeiro facilita a replicação do parasita. O granuloma se constitui em lesão típica e envolve os ovos depositados pelos parasitas. Essa resposta inflamatória granulomatosa compõe uma reação tipo tardia mediada por células T CD4 que podem desencadear uma resposta Th1 ou Th2, que estimula a produção de anticorpos (IgE) e maior produção de eosinófilos15.
O objetivo deste artigo, além de apresentar um caso de esquistossomose mansoni endocervical, é chamar a atenção para a importância de se investigar a esquistossomose mansoni em trato genital de mulheres que residem em áreas endêmicas.
Estudo aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa em Seres Humanos da Universidade Tiradentes, Aracaju, Sergipe, sob número 350912. A paciente assinou o Termo de Consentimento Livre Esclarecido, de acordo com a Resolução CNS 196/96. Os dados foram obtidos durante consulta, exames ginecológico, bioquímico, coprológico e de imagem (ultrassonografia abdominal total e transvaginal), além de colposcopia e colpocitologia.
A paciente estudada era uma mulher de 26 anos, casada, procedente do interior de Sergipe, atendida na Unidade de Saúde da Família Madre Tereza de Calcutá em Aracaju, Sergipe, no dia 15 de fevereiro de 2012. Referia queixa de dor abdominal em hipogástrio, corrimento vaginal de aspecto levemente amarelado, dispareunia e dismenorreia, que piorava com a menstruação; ciclo menstrual regular; aborto espontâneo há 10 anos, sendo submetida a uma curetagem; exame de Papanicolau realizado um mês antes da consulta; antecedentes familiares sem alterações; bom estado geral. Referiu dor à palpação superficial e profunda em hipogástrio. Ausência de visceromegalias. Colposcopia e colpocitologia: colo uterino de tamanho médio, apresentando uma lesão friável no orifício externo, com aspecto de couve-flor. Presença de um pólipo endocervical e secreção vaginal amarelada sem odor; zona de transformação e orifícios glandulares normais; vasos típicos regulares. Teste de Schiller negativo. Enviadas amostras da lesão e do pólipo para estudo histopatológico.
A paciente retornou em 24 de abril de 2012 com ultrassonografia do abdome total e transvaginal revelando líquido em pelve e útero bicorno. O laudo histopatológico foi: análise macroscópica e microscópica de quatro fragmentos de tecido polipoide medindo, o maior deles, 0,6 x 0,3 x 0,2 cm; fragmentos irregulares e uma de suas faces coberta por epitélio de cor acastanhada opaca e consistência elástica. Microscopicamente: cortes histológicos exibem pólipo endocervical (Figura 1) e esquistossomose em mucosa endocervical, caracterizada por múltiplos granulomas envolvendo ovos viáveis e degenerados de S. mansoni no córion (Figura 2). Presença de reação inflamatória crônica inespecífica rica em eosinófilo no tecido circundante (Figura 3).
Figura 1
Formação polipoide de mucosa endocervical, revestida por epitélio colunar simples muco secretor, sem atipias, com reação inflamatória crônica granulomatosa no córion
Figura 2
Ovos de S. Mansoni (A) circundados por células epitelioides (B) formando o granuloma no córion endocervical
Figura 3
Granuloma envolvendo ovo viável de S. Mansoni (A) adjacente ao epitélio endocervical, formado por células epitelioides e abundantes eosinófilos (B)
Foi utilizado Praziquantel (50 mg/kg) em dose única. Não houve relato de efeitos colaterais.
Após quatro semanas, a paciente retornou ao ambulatório com regressão dos sintomas e das lesões endocervicais. Em 28 de junho de 2012, o exame coprológico revelou resultado negativo para parasitoses. Reavaliada em 15 de agosto de 2012, não apresentava queixas.
Ao exame clínico apresentava vulvoscopia dentro dos limites da normalidade. Exame colposcópico evidenciou secreção vaginal branca leitosa, sem odor. Ausência de lesões no colo do útero. Teste de Schiller negativo. O exame ginecológico não mostrava anormalidades, exame coprológico (fresco e três amostras) negativos para parasitoses e ultrassonografia transvaginal sem novos achados.
A suspeita inicial de carcinoma para a lesão encontrada na paciente não foi confirmada pela histopatologia; nos exames coprológicos não foi detectado S. mansoni. Entretanto, um resultado negativo não afasta a possibilidade de infestação, visto que a pesquisa pode ser ocasionalmente negativa em estágios precoces da infecção ou em infecções crônicas. Em 1.250 amostras de biópsia de colo de portadoras de esquistossomose sistêmica, apenas 4 casos (0,3%) apresentaram lesão de colo uterino (carcinoma in situ, carcinoma de células escamosas invasivo do colo uterino, lesão cervical benigna). Na lesão cervical benigna foram detectados ovos do parasita, porém, estudos posteriores afirmaram que o carcinoma estaria associado à coinfecção pelo papiloma vírus humano (HPV) e não à esquistossomose16,17.
A esquistossomose endocervical é um fator de risco para infecções por doenças sexualmente transmissíveis, especialmente pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV) e pelo HPV. Isso ocorre devido a uma modificação da história natural e à resposta imunológica a tais infecções17,18.
É pouco conhecido o mecanismo pelo qual os ovos de S. mansoni vão para o trato genital feminino. Entretanto, vários estudos apontam que, nos casos de S. haematobium, muitos ovos do esquistossomo não conseguem sair do corpo e chegam a embolizar dentro dos leitos capilares de órgãos pélvicos, especialmente nos tecidos da bexiga, ureteres e os órgãos genitais femininos, onde induzem a formação de granulomas e, finalmente, pequenos nódulos19,20.
A esquistossomose endocervical está associada a uma grande variedade de sintomas clínicos. O quadro clínico se apresenta com dor em hipogástrio, dispareunia e dismenorreia, hemorragia (sangramento pós-coito e sangramento intermenstrual) ou leucorreia. A resposta imune do hospedeiro contra antígenos do parasita desempenha um papel crítico e sinaliza a gravidade da inflamação dos tecidos e das doenças associadas.
Achados macroscópicos e histopatológicos nas amostras da paciente foram similares aos da literatura15, tais como aspecto de "couve-flor", hipertrofia nodular, ulcerativa e lesões nodulares. Microscopicamente, observou-se uma reação inflamatória intensa (células plasmáticas, linfócitos, eosinófilos e macrófagos) em torno dos ovos viáveis e uma reação inflamatória de tecido conjuntivo com infiltrado celular mínimo ao entorno dos ovos não viáveis.
Helling-Giese et al.21identificaram esquistossomose urinária e genital em trinta e três mulheres em Malawi, infectadas por S. haematobium. Foram avaliadas através de exame parasitológico e ginecológico, e submetidas à colposcopia, com biópsia, para avaliação histopatológica e imunohistoquímica. Foram observadas respostas inflamatórias com algumas características específicas, semelhantes às encontradas na paciente em estudo. As seções histopatológicas das lesões demonstraram pequena reação celular em torno de ovos do S. haematobium em vários estágios de desintegração, além de reação imunológica acentuada, caracterizada por um infiltrado celular intenso em fragmento de lesão polipoide21,22.
O diagnóstico diferencial da esquistossomose genital feminina deve ser considerado para as pacientes que têm uma história de residência ou de viajar para áreas endêmicas.
Oxamniquine e praziquantel são fármacos utilizados no tratamento da esquistossomose. Contudo, ambos apresentam limitações, como baixa eficácia no tratamento da esquistossomose mansoni aguda, baixa atividade sobre o S. mansoni na forma imatura e falha em tratamentos, devido à ocorrência de resistência ou tolerância a esses fármacos23. A vacina contra a esquistossomose faz parte de recentes avanços no campo da genômica23-25. Até 2010, o Instituto Butantã, no Brasil, desenvolvia pesquisa no Projeto Temático Genoma funcional do Schistosoma mansoni aplicado ao desenvolvimento de vacinas26.
Apesar da descoberta de vários antígenos potencialmente promissores a partir de S. mansoni, S. japonicum e S. haematobium, apenas uma vacina (S. haematobium) foi submetida a ensaios clínicos26. A prevenção e o controle da esquistossomose são baseados no tratamento em larga escala de grupos populacionais em situação de risco. O objetivo é reduzir a doença utilizando tratamento periódico para curar sintomas leves e evitar que pessoas infectadas desenvolvam doença crônica grave.
Corrimento vaginal e dispareunia podem ser causas secundárias de cervicite por S. mansoni. Pesquisa de ovos em esfregaços vaginais de rotina e exame histológico de amostras de biópsias devem fazer parte da avaliação ginecológica de pacientes de área endêmica, com o objetivo de rastrear a forma ectópica da esquistossomose no trato genital feminino. Considerando que os índices de prevalência em municípios dos Estados do Nordeste ainda sejam elevados, acredita-se que a subnotificação e a falta de uma investigação mais dirigida sejam responsáveis pela ausência de diagnósticos de formas ectópicas dessa enfermidade parasitária. Este estudo sinaliza a importância epidemiológica no diagnóstico dessa infecção, no sentido de diagnosticar novos casos de apresentação ectópica de esquistossomose mansoni no trato genital feminino.
Ao SOLIM Laboratório de Patologia