DOI: 10.1590/S0100-720320140004935 - volume 36 - Junho 2014
Renata Franco Pimentel Mendes, Silvio Martinelli, Roberto Eduardo Bittar, Rossana Pulcineli Vieira Francisco, Marcelo Zugaib
Recém-nascidos portadores de restrição de crescimento fetal (RCF) apresentam maior frequência de complicações perinatais1-3. Como o peso de nascimento é apenas uma medida final, antecipar o diagnóstico pode contribuir para a redução da morbimortalidade4-6.
A determinação exata da idade gestacional é imprescindível para o diagnóstico de RCF - sua confirmação só pode ser realizada após o nascimento. Durante a gestação, o diagnóstico provável de RCF é realizado por métodos clínicos e ultrassonográficos7,8.
Como método clínico, a altura uterina é a mais utilizada. A medida da altura uterina inferior ao percentil 10 para a idade gestacional constitui sinal clínico suspeito e deve ser sempre utilizada para o rastreamento de RCF. Apesar de ser método barato e de fácil acesso, a medida da altura uterina pode sofrer interferência de vários fatores como: índice de massa corpórea e paridade materna, volume de líquido amniótico e apresentação fetal9. Por esse motivo, deve ser complementada, nos casos suspeitos, pela ultrassonografia obstétrica, que representa nos dias atuais o principal instrumento de detecção dos desvios do crescimento fetal durante a gravidez10,11.
Considera-se a presença de RCF suspeita quando o peso estimado do feto pela ultrassonografia é inferior ao percentil 10 para a idade gestacional. Em virtude dos inúmeros fatores epidemiológicos que podem influenciar o peso fetal, a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda que cada população tenha a sua própria curva de crescimento12,13. No entanto, nosso país carece de uma curva padrão de crescimento fetal. A curva mais utilizada na maioria dos serviços de excelência é a curva de Hadlock et al.14,15.
Diante da suspeita de RCF, preconizamos exames de ultrassonografia quinzenais, para monitorizar o crescimento fetal, e exames de vitalidade fetal semanais, a partir da 26ª semana, por meio da cardiotocografia, do perfil biofísico fetal e da dopplervelocimetria16-18. Tal procedimento visa à monitoração fetal e possibilita uma intervenção precoce, caso necessária19,20.
Embora a ausência do diagnóstico da RCF seja apontada como a principal causa de mau resultado na gestação, o falso diagnóstico também apresenta implicações importantes21,22. Envolve custos hospitalares altos, demanda maior de especialistas, além de aumentar o estresse e a ansiedade materna. Apesar de toda essa importância, muito pouco foi relatado na literatura sobre fatores que podem estar associados a esse falso diagnóstico. O conhecimento desses fatores poderia evitar condutas desnecessárias antes da confirmação final do déficit de crescimento do feto, que não trariam benefício ao produto conceptual, como exames seriados e até a antecipação do parto. Em nosso estudo, procuramos, em gestantes encaminhadas com diagnóstico suspeito de RCF e não confirmado após o nascimento, descrever algumas características relacionadas a esses falso-positivos.
Trata-se de um estudo caso-controle não pareado realizado no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP) no período de 2006 a 2013. Este estudo foi aprovado pela Comissão de Ética para Análise de Projetos de Pesquisa do HCFMUSP.
Gestantes encaminhadas ao Setor de Baixo Peso Fetal com suspeita de RCF foram comparadas quanto ao peso de nascimento superior ou inferior ao percentil 10 para a idade gestacional. Foram incluídas gestações únicas com idade gestacional bem estabelecida, acima da 25ª semana, e fetos com ausência de malformações.
A idade gestacional foi estabelecida por meio de dois métodos: data da última menstruação (DUM) compatível com a idade gestacional determinada pela ultrassonografia obstétrica realizada até a 12ª semana, ou pelo menos duas ultrassonografias com idades gestacionais concordantes até a 20ª semana.
O parâmetro clínico utilizado foi a medida da altura uterina, realizada da sínfise púbica até o fundo uterino com fita métrica. O percentil de altura uterina foi calculado segundo curva-padrão do próprio serviço, a Martinelli et al.23,24. O peso fetal estimado pela ultrassonografia foi calculado pela fórmula de Hadlock et al.14, levando em conta medidas do diâmetro biparietal (DBP), circunferência cefálica (CC), circunferência abdominal (CA) e comprimento do fêmur (F). A curva utilizada para o diagnóstico pós-natal de RCF foi a de Alexander et al.25.
As gestantes foram divididas em dois grupos: grupo estudo e grupo controle. No grupo estudo (não RCF), foram incluídas 48 gestantes com peso de nascimento com percentil superior a 10 para a idade gestacional. E no grupo controle (RCF), foram incluídas 278 gestantes cujos pesos de nascimento eram inferiores ao percentil 10 para a idade gestacional.
Os dados foram obtidos do banco de dados de registro das pacientes do Ambulatório de Baixo Peso Fetal, por meio de software próprio (Microsoft Access 2007(r)). Foram analisadas as seguintes variáveis: idade, paridade e idade gestacional na primeira consulta de pré-natal no setor; número de exames ultrassonográficos prévios à admissão; percentil de peso da primeira ultrassonografia no serviço; idade gestacional e percentil de peso da última ultrassonografia realizada; número de casos em que o percentil da altura uterina era superior a 10 na primeira consulta; e número de casos em que pelo menos um exame de ultrassonografia tinha percentil superior a 10 - nesse subgrupo: a idade gestacional e o percentil do exame normal, idade gestacional, peso e percentil de nascimento e total de exames de ultrassonografia e de vitalidade realizados no serviço.
Os dados foram analisados utilizando-se o programa Statplus para Mac, versão 5.8(r). Os resultados obtidos no estudo foram divididos em variáveis categóricas e contínuas para análise. As variáveis categóricas foram analisadas descritivamente, calculando-se frequências absolutas e relativas. Para análise das variáveis contínuas, os resultados foram expressos em médias, medianas, desvios padrão, frequências absolutas e relativas. Para comparação entre proporções, foi aplicado o teste do χ2, e, quando pertinente, o teste exato de Fisher. O nível de significância foi estabelecido em p<0,05 para todos os testes.
As principais características sociodemográficas das gestantes incluídas estão apresentadas na Tabela 1. Não houve diferença significante entre os grupos em relação a essas variáveis.
Variáveis | Grupo não RCF | Grupo RCF | Valor p | ||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
n | Média±DP | Mediana | Mín. | Máx. | n | Média±DP | Mediana | Mín. | Máx. | ||
Idade | 48 | 28,4±5,7 | 27,5 | 16 | 41 | 278 | 27,3±6,9 | 26,5 | 15 | 42 | 0,5 |
Número de gestações | 48 | 2,3±1,1 | 2,0 | 1 | 6 | 278 | 2,2±1,3 | 2,0 | 1 | 5 | 0,4 |
Número de partos | 48 | 1,0±0,9 | 1,0 | 0 | 3 | 278 | 0,9±1,0 | 1,0 | 0 | 4 | 0,7 |
: não restrição de cerscimento fetal
RCF
: restrição de crescimento fetal.
Tabela 1
Características sociodemográficas das gestantes
A idade gestacional da primeira consulta de pré-natal no grupo não RCF variou de 25,3 a 37,9 semanas, com média e desvio padrão de 32,8±2,9 semanas, respectivamente. No grupo RCF, a idade gestacional variou de 26,4 a 39,8 semanas (média de 34,3 semanas e desvio padrão de 2,6 semanas). Houve diferença significativa entre os grupos (p<0,001).
O percentil da primeira ultrassonografia realizada no serviço no grupo não RCF foi em média 10,7±9,0, comparado ao do grupo RCF, de 7,7±9,9 (p=0,02).
As gestantes encaminhadas ao Setor de Baixo Peso Fetal que tiveram recém-nascidos com peso superior ao percentil 10 (grupo não RCF) haviam sido avaliadas em mínimo de 2 e máximo de 6 exames de ultrassonografia previamente, com média de 3,8 e desvio padrão de 1,0. Ainda nesse grupo, dos 48 casos analisados, apenas 12 (25%) tinham ultrassonografia de 1º trimestre. As gestantes encaminhadas que tiveram recém-nascidos com peso inferior ao percentil 10 (grupo RCF) foram submetidas a no mínimo 1 exame ultrassonográfico prévio e no máximo 6 exames, com média de 3,4±1,1. Desses 278 casos, 100 (36%) foram submetidas à ultrassonografia de 1º trimestre. Os grupos também se mostraram diferentes segundo esses critérios (p=0,007).
Os conjuntos também foram comparados quanto ao número de casos em que o percentil de altura uterina era superior a 10 na primeira consulta de pré-natal. No grupo não RCF, em 32 casos (66,7%) o percentil da altura uterina diferiu do percentil da ultrassonografia na primeira consulta. No grupo RCF, em 133 casos (44,2%) a altura uterina era superior ao percentil 10 para a idade gestacional.
O grupo não RCF apresentou 25 casos (52,1%) em que pelo menos 1 exame de ultrassonografia mostrava peso estimado do feto superior ao percentil 10 para a idade gestacional, e o grupo RCF, 83 casos (29,8%), como demonstra a Figura 1. No subgrupo não RCF, a idade gestacional média do exame de ultrassonografia normal foi de 33,5±4,3 semanas (com variação de 25,1 a 39,7 semanas), e o percentil médio, de 21,9±9,5 (com variação de 10,9 a 42,7). No subgrupo RCF, a média da idade gestacional em que foi realizada a ultrassonografia normal foi 31,5 semanas, com desvio padrão de 4,3 (variação de 25,1 a 39,9 semanas) e o percentil médio de 22,0, com desvio padrão de 13,3 (variação de 10,1 a 67,6), como mostra a Tabela 2. A idade gestacional, nesses subgrupos, mostrou diferença estatística significante (p=0,04), ao contrário do percentil (p=0,9).
Figura 1
Distribuição das gestantes segundo a frequência de pelo menos uma ultrassonografia com peso fetal estimado acima do percentil 10
Tabela 2
Médias, desvios padrão, medianas, mínimos e máximos dos resultados comparativos; comparação entre os grupos não RCF e RCF
Variáveis | Grupo não RCF | Grupo RCF | Valor p | ||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
n | Média±DP | Mediana | Mín | Máx | n | Média±DP | Mediana | Mín. | Máx. | ||
Idade gestacional da primeira consulta PN | 48 | 32,7±2,90 | 33,5 | 25,3 | 37,9 | 278 | 34,3±2,6 | 34,8 | 26,4 | 39,8 | 0,0002 |
Percentil de peso da primeira USG | 48 | 10,7±9,00 | 8,5 | 3,0 | 43,0 | 278 | 7,7±9,9 | 4,5 | 3,0 | 71,3 | 0,02 |
Número de exames USG prévios | 48 | 3,8±1,00 | 4,0 | 2,0 | 6,0 | 278 | 3,3±1,0 | 3,0 | 1,0 | 6,0 | 0,008 |
Idade gestacional da primeira USG normal | 25 | 33,5±4,30 | 34,1 | 25,1 | 39,7 | 83 | 31,5±4,2 | 31,3 | 25,4 | 39,9 | 0,049 |
Percentil do primeiro USG normal | 25 | 21,8±9,50 | 20,5 | 10,8 | 42,7 | 83 | 22,0±13,2 | 17,6 | 10,0 | 67,6 | 0,96 |
Idade gestacional da última USG | 48 | 36,0±2,52 | 36,5 | 27,7 | 39,7 | 278 | 35,5±2,4 | 36,0 | 27,0 | 40,0 | 0,14 |
Percentil de peso da última USG | 48 | 18,2±13,50 | 13,2 | 3,0 | 53,3 | 278 | 6,8±7,4 | 4,2 | 3,0 | 67,6 | <0,0001 |
Número de exames de USG no serviço | 48 | 5,0±1,43 | 5,0 | 2,0 | 9,0 | 278 | 4,6±1,5 | 5,0 | 1,0 | 9,0 | 0,14 |
Número de exames de vitalidade no serviço | 48 | 4,6±2,60 | 4,0 | 1,0 | 11,0 | 278 | 3,9±2,3 | 4,0 | 1,0 | 12,0 | 0,21 |
: não restrição de cerscimento fetal
RCF
: restrição de crescimento fetal
PN
: pré-natal
USG
: ultrassonografia
Quanto à última ultrassonografia realizada, o grupo não RCF mostrou idade gestacional média de 36,0±2,5 semanas, e percentil médio de 18,2±13,5. No grupo RCF, a média da idade gestacional foi de 35,5±2,4 semanas, e o percentil médio, de 6,8±7,4. A idade gestacional não se mostrou diferente entre os grupos (p=0,1), o que não ocorreu com o percentil da ultrassonografia (p<0,01).
O peso médio e o percentil médio de nascimento do grupo não RCF foram de 2994,7 g (±355,5 g) e 26,6 (±17,7), respectivamente. No grupo RCF, a média do peso de nascimento foi de 2275,3 g (±446,5 g), e do percentil, de 5,5 (±1,1).
Após a matrícula da gestante no serviço, o grupo não RCF realizou em média 5,0±1,4 exames de ultrassonografia obstétrica, e o grupo RCF, uma média de 4,6±1,5 exames (p=0,14). Quanto aos exames de vitalidade realizados entre os casos do grupo não RCF após ingressar no serviço, estes variaram entre 1 e 11 (média de 4,6 exames), enquanto no grupo RCF o número de exames de vitalidade realizados variou de 1 a 12 (média de 3,9 exames), também sem diferença estatística (p=0,2).
Esforços têm sido feitos com o objetivo de melhorar os métodos diagnósticos da restrição de crescimento fetal, visando à redução de sua morbimortalidade26-30. Em contraposição, há poucos estudos que mencionam efeitos adversos de resultados falso-positivos e fatores associados a esse falso diagnóstico. O objetivo do presente estudo foi apontar possíveis fatores associados ao diagnóstico falso-positivo de RCF no pré-natal.
Foi constatado o encaminhamento tardio das gestantes com suspeita de RCF ao Setor de Baixo Peso Fetal, uma vez que a idade gestacional média foi de 32,8 semanas no grupo de falso-positivos (não RCF) e de 34,3 semanas no grupo RCF. Além disso, o grupo não RCF foi submetido a maior número de ultrassonografias prévias à matrícula da gestante no serviço (3,8x3,4). Mesmo assim, isso não contribuiu significativamente para um diagnóstico acurado de RCF. Observamos também no presente estudo que no grupo não RCF apenas 1/4 das pacientes havia sido avaliado com exame ultrassonográfico até a 12ª semana, em comparação ao grupo RCF, com 36% de ultrassonografias até essa fase. A idade gestacional, muitas vezes imprecisa, pode levar ao falso-positivo.
Quando comparado o percentil de peso da última ultrassonografia, este foi mais alto para o grupo não RCF. Portanto, em idade gestacional mais tardia, a caracterização do grupo de falso-positivos ficou mais acurada. No grupo não RCF, em 25 casos (52,1%) verificou-se a presença de pelo menos 1 exame de ultrassonografia com percentil maior que 10 durante o seguimento no serviço, enquanto no grupo RCF isso ocorreu em 83 casos (29,8%). Nesse subgrupo de pacientes, a idade gestacional do grupo não RCF foi mais tardia (33,5x31,5 semanas) e apresentou diferença significante. O grupo de falso-positivos, portanto, apresentou maior probabilidade de ter pelo menos um exame ultrassonográfico superior ao percentil 10 até o parto31.
Na primeira consulta no Setor de Baixo Peso Fetal, em quase 67% dos casos do grupo de falso-positivos a medida da altura uterina na primeira consulta mostrou correlação com o peso de nascimento, e em 56% dos casos do grupo de RCF houve essa correlação. Um estudo que comparou a medida da altura uterina com a ultrassonografia mostrou sensibilidade de 76 e 83%, respectivamente, para a predição da RCF no 3º trimestre da gestação, mas sem demonstrar diferença estatística significativa32. Outro estudo, que avaliou a validade da estimativa do peso fetal por método baseado na altura uterina (regra de Johnson), não apresentou diferença do ponto de vista estatístico com a estimativa ultrassonográfica do cálculo do peso ao nascer33. Devemos valorizar, portanto, métodos clínicos em relação a esse diagnóstico e não considerar apenas a ultrassonografia, mesmo sendo o método mais importante34.
Nosso estudo aponta para alguns fatores relacionados ao diagnóstico incorreto de RCF. O impacto desse falso diagnóstico, porém, pode ser difícil de ser mensurado. No presente estudo, a realização do exame ultrassonográfico nas últimas semanas de gestação foi capaz de afastar o erro diagnóstico para a RCF, e a medida da altura uterina foi também importante para essa diferenciação. Métodos diagnósticos mais bem empregados podem otimizar recursos humanos e financeiros e contribuir para uma taxa menor de resultados falso-positivos.