DOI: S0100-72032015005005180 - volume 37 - Fevereiro 2015
Fernanda Pipitone Rodrígues, Silvio Martinelli, Roberto Eduardo Bittar, Rossana Pulcineli Vieira Francisco, Marcelo Zugaib
A restrição do crescimento fetal (RCF) é assunto de grande relevância por ser uma das principais complicações da gravidez e acarretar elevados índices de morbimortalidade perinatais1,2. Há relação direta entre baixo percentil de peso ao nascer e mau prognóstico perinatal, com os maiores riscos se apresentando em fetos com percentil menor do que 33,4. Somado a isso, a RCF está associada a hipertensão arterial, dislipidemia, doença coronariana e diabetes mellitus na vida adulta5-7. No entanto, não há, até o momento, tratamento clínico que previna ou corrija esse déficit. Tentar esclarecer a etiologia e definir o momento mais adequado para o parto é, portanto, um desafio na prática obstétrica8.
A RCF é habitualmente definida na literatura como peso fetal inferior ao percentil 10 para a idade gestacional, empregando-se, na maioria das vezes, curvas-padrão próprias de cada população9. Apesar de amplamente utilizada, essa definição tem sua limitação por não fazer distinção entre fetos pequenos constitucionais e fetos pequenos em razão de um processo patológico que os impediu de atingir seu potencial genético. Também não há consenso se a curva-padrão deve ser baseada no peso de nascimento, no peso fetal estimado pela ultrassonografia ou em curvas individualizadas (ajustadas por fatores maternos)10-13. A crítica mais relevante em relação à utilização do peso de nascimento é o fato de recém-nascidos (RN) prematuros apresentarem também restrição de crescimento com maior frequência. A limitação da estimativa ultrassonográfica de peso é sua imprecisão, uma vez que estima os valores com o feto intraútero14.
O rastreamento pré-natal da RCF na população obstétrica envolve identificação de fatores de risco e avaliação indireta do crescimento fetal pelo exame físico. Medidas seriadas da altura uterina abaixo do percentil 10 para a idade gestacional elevam a suspeita de restrição e demandam investigação aprofundada15-17. Apesar da suspeita de RCF durante a gestação, esse diagnóstico só pode ser confirmado após o parto, quando definimos um recém-nascido pequeno para idade gestacional (PIG), cujo peso de nascimento é também inferior ao percentil 10 para a idade gestacional9.
Diversos estudos foram feitos sobre curvas de crescimento fetal, e diferentes padrões populacionais foram criados ao longo dos anos18,19. Battaglia e Lubchenco9 utilizaram pesos de nascidos vivos em Denver, Estados Unidos da América, para definir o intervalo entre os percentis 10 e 90 como adequado para idade gestacional. Já Usher e McLean20 escolheram critérios mais rígidos, adotando como RCF pesos inferiores ao percentil 3. Entre as várias curvas de crescimento fetal adotadas, destacam-se a curva de Alexander et al.21 e, mais recentemente, a de Fenton e Kim22, que serão revisadas neste estudo.
Em 1996, Alexander et al.21 desenvolveram curva de referência nacional norte-americana valendo-se do peso de nascimento de nascidos vivos em 1991 de gestações únicas de mãe residentes dos EUA. A curva de Alexander et al.21 foi amplamente utilizada como referência nacional para crescimento fetal nos EUA até 2010, quando foi substituída pela de Olsen et al.23, uma nova referência americana. Em 2013, Fenton e Kim22realizaram uma metanálise incluindo estudos de seis países desenvolvidos e abrangendo amostra importante de recém-nascidos com registros de peso, comprimento e perímetro cefálico. A curva se valeu ainda do padrão de crescimento da OMS24 por 10 semanas, permitindo um acompanhamento clínico até 50 semanas de idade gestacional corrigida. Esse cálculo é feito para ajuste da idade cronológica em função do grau de prematuridade. Considerando-se ideal nascer com 40 semanas de idade gestacional, subtrai-se da idade cronológica as semanas que faltam para atingir 40 semanas24.
Este estudo teve por objetivo comparar a aplicação de duas importantes curvas de crescimento fetal, Alexander et al.21 e Fenton e Kim22, para o diagnóstico de RN PIG, utilizando o percentil 10 como referência.
Trata-se de estudo retrospectivo com dados de parto de 20.567 RN vivos, de gestações únicas, na Clínica Obstétrica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP), entre janeiro de 2003 e junho de 2014. Esses dados foram selecionados do Programa da Enfermaria da Clínica Obstétrica (Microsoft Access 2007).
O presente estudo não recebeu suporte financeiro ou equipamentos ou medicamentos de nenhuma outra instituição, e não apresenta conflitos de interesse.
Os recém-nascidos foram divididos por grupos conforme a idade gestacional:
23 a 25 semanas e 6 dias (n=185);
26 a 28 semanas e 6 dias (n=421);
29 a 31 semanas e 6 dias (n=670);
32 a 34 semanas e 6 dias (n=1.421);
35 a 37 semanas e 6 dias (n=6.725);
38 a 40 semanas e 6 dias (n=10.562); e
41 semanas ou mais (n=583).
Os grupos foram comparados quanto ao diagnóstico de PIG (peso de nascimento abaixo do percentil 10) segundo as curvas de Alexander et al.21 e Fenton e Kim22, utilizando software próprio do Setor de Baixo Peso Fetal (Microsoft Access 2007).
As seguintes variáveis foram analisadas: idade gestacional no momento do parto; percentil de peso para a idade gestacional segundo Alexander et al.21; percentil de peso para a idade gestacional segundo Fenton e Kim22 e número de recém-nascidos com peso inferior ao percentil 10 em cada grupo
Após compilados, os dados foram pareados, e os grupos comparados por teste de igualdade de proporções segundo método de McNemar. O nível de significancia foi estabelecido em p<0,05.
A Tabela 1 mostra os recém-nascidos com peso abaixo do percentil 10, segundo as curvas de Alexander et al.21 e Fenton e Kim22, divididos pelos grupos de idade gestacional.
Tabela 1
Porcentagem de recém-nascidos abaixo do percentil 10 segundo a curva de Alexander et al.21 e Fenton e Kim22 por faixa de idade gestacional, na amostra de recém-nascidos vivos nascidos entre janeiro de 2003 e junho de 2014
IG | Alexander <p10 | Fenton <p10 | Diferença % |
---|---|---|---|
23–26 | 17,8 | 16,8 | 1,0 |
26–29 | 35,2 | 28,5 | 6,7 |
29–32 | 41,5 | 23,6 | 17,9 |
32–35 | 44,1 | 25,6 | 18,5 |
35–38 | 35,2 | 20,0 | 15,2 |
38–41 | 18,8 | 14,2 | 4,6 |
>41 | 10,1 | 27,3 | −17,2 |
37–40 | 24,3 | 15,2 | 9,1 |
IG: idade gestacional
Quando se aplica a curva de Alexander et al.21, detecta-se maior porcentagem de RN PIG em todas as faixas, com exceção do grupo de idade gestacional acima de 41 semanas. Essa diferença foi máxima entre 32 e 35 semanas (18,5%).
Também foi avaliado, em razão de sua importância na prática clínica, o período entre a 37a e a 40a semana. Nessa faixa, a curva de Alexander et al.21 superou a de Fenton e Kim22 em 9,1%.
Com exceção dos grupos entre 23 e 26 semanas, todas as outras faixas de idade gestacional mostraram-se significativamente diferentes quanto ao diagnóstico de RN PIG, como mostra a Tabela 2.
Tabela 2
Aplicação do teste de McNemar por grupos, conforme a idade gestacional, para comparação da taxa de recém-nascidos pequenos para a idade gestacional segundo curva de Alexander et al.21 e Fenton e Kim22, com dados de recém-nascidos vivos entre janeiro de 2003 e junho de 2014
Idade gestacional (semanas) | Número de RN | Estatística (χ2) | Valor p |
---|---|---|---|
23–26 | 185 | 0,7 | 0,4 |
26–29 | 421 | 28,0 | <0,01 |
29–32 | 670 | 120,0 | <0,01 |
32–35 | 1.421 | 263,0 | <0,01 |
35–38 | 6.725 | 1021,0 | <0,01 |
38–41 | 10.562 | 350,9 | <0,01 |
Acima de 41 | 583 | 100,0 | <0,01 |
RN: recém-nascido
Tabela 1. Porcentagem de recém-nascidos abaixo do percentil 10 segundo a curva de Alexander et al.21 e Fenton e Kim22 por faixa de idade gestacional, na amostra de recém-nascidos vivos nascidos entre janeiro de 2003 e junho de 2014
Isso pode ser mais bem observado quando comparamos as duas curvas, avaliando só os casos com peso de nascimento abaixo do percentil 10 (Figuras 1 e 2). Especialmente após a 26a semana, o percentil 10 da curva de Alexander et al.21 mostra valores mais elevados até próximo de 40 semanas. Essa diferença se mostra mais evidente quando se compara as duas curvas para meninas.
Figura 1
Pesos de recém-nascidos e percentil 10 segundo Alexander et al.21 e Fenton e Kim22 meninos
Figura 2
Pesos de recém-nascidos e percentil 10 segundo Alexander et al.21 e Fenton e Kim22 meninas
Embora tenha havido múltiplos estudos em busca de um referencial de crescimento fetal, ainda não há na literatura consenso sobre um padrão, ou seja, uma definição de normalidade. Também não encontramos estudos até o momento que tenham comparado o diagnóstico de PIG pelas Curvas de Alexander et al.21 e Fenton e Kim22.
Alexander et al.21 se propuseram a criar uma curva de referência de crescimento fetal norte-americana, comparar a curva obtida com trabalhos previamente publicados e estabelecer curvas específicas para cada sexo. O estudo tomou como amostra 3.134.879 nascidos vivos de gestações únicas de mães residentes americanas e considerou o percentil 10 como ponto de corte para PIG. O cálculo da idade gestacional foi baseado na data da última menstruação (DUM).
Alexander et al.21 selecionaram curvas de crescimento fetal de diferentes regiões e grupos étnicos nos EUA para comparar com seu estudo (Curvas de Lubchenco, Brenner, Williams e Ott). Entre os quatro estudos selecionados para comparação, o percentual de PIG variou de 2,7 a 15,6%, estando Brenner e Lubchenco muito abaixo dos 10% esperados (4,5 e 2,7%, respectivamente). Os autores discutem que as curvas publicadas anteriormente subestimaram o diagnóstico de RCF, com maior evidência entre a 33a e a 38a semana de idade gestacional, e que, portanto, esse diagnóstico varia enormemente conforme a curva utilizada. Por essa razão, consideram que muitas curvas publicadas já não representam material atualizado para referência de percentil 10 do peso de nascimento para a idade gestacional. Alexander et al.21 postulam razões para a disparidade entre sua curva e as anteriormente publicadas. Algumas foram construídas décadas antes e, portanto, refletem em parte uma melhora nutricional e de crescimento da população americana. Outras talvez não sejam representativas de toda população. A curva de Alexander et al.21, além de abranger amostra muito ampla, foi baseada em um banco de dados nacional e não em um único serviço ou região, o que permite ao estudo validação externa. Por outro lado, apesar de ser um instrumento útil para comparação, a curva de Alexander et al.21 não é adequada para estudo de grupos éticos específicos. Outra limitação do trabalho é o fato de utilizar a DUM para o cálculo da idade gestacional, o que pode reduzir a acurácia dos dados.
Fenton e Kim22 realizaram uma metanálise abrangendo estudos de seis países desenvolvidos (Alemanha, Austrália, Canadá, Escócia, EUA e Itália), produzidos entre 1987 e 2012, e incluíram amostra importante de recém-nascidos: 3.986.456 com registros de peso, 151.527 de comprimento e 173.612 de perímetro cefálico. O estudo teve por objetivo revisar seu antecessor Fenton Preterm Growth Chart25 de 2003, especificamente para: incluir dados mais recentes de peso ao nascer; harmonizar a curva de crescimento de pré-termos com a curva da Organização Mundial da Saúde24; suavizar a transição entre as duas curvas sem perder a integridade dos dados de 22 a 36 e com 50 semanas (pós-natal); produzir curvas específicas para cada sexo; e mudar a escala do eixo x dos gráficos para idades gestacionais precisas, a fim de melhorar a acurácia.
Os estudos incluídos na metanálise mostraram boa concordância, em especial no percentil 50 e seus inferiores. Quando analisados por idade gestacional, houve semelhança até 36 semanas e novamente com 50 semanas. Fenton e Kim22 concluem que o padrão de crescimento ideal ainda permanece indefinido. Discutem que utilizar o peso de recém-nascidos pré-termo é medida enviesada, já que há maior probabilidade de um prematuro apresentar restrição de crescimento, e que, portanto, fetos que permanecem no útero podem carregar diferenças importantes.
Na amostra deste estudo, a curva de Alexander et al.21 superou a de Fentone Kim22 no número de diagnósticos de PIG em todas as faixas de idade gestacional até 41 semanas, com maior diferença entre a 32a e a 35a semana (18,5%).
Há implicação clínica na taxa de diagnóstico de PIG ao se utilizar Fenton e Kim22. Na faixa de idade gestacional entre 37 e 40 semanas, quando é indicada a resolução da grande maioria dos casos suspeitos de RCF, a diferença no diagnóstico foi de 9,1%.
Concluímos que a curva de Fenton e Kim22consiste em instrumento estatístico mais robusto, construída com informações mais recentes e que permite a avaliação do crescimento por três parâmetros e por sexo. Na interface com a Pediatria, não se pode deixar de citar outra vantagem da curva de Fenton e Kim22: por ter harmonizado os dados com a curva da OMS24 a partir da 40a semana, ela permite ao pediatra o acompanhamento do crescimento até 50 semanas de idade gestacional corrigida. A correção da idade cronológica em função da prematuridade é fundamental para o correto diagnóstico do desenvolvimento nos primeiros anos de vida e para diminuir o risco de classificar erroneamente prematuros como anormais. A utilização da curva de Fenton e Kim22 implica menor número de crianças que terão cuidados especiais no berçário, segundo esse critério, e, portanto, menores custos hospitalares.