DOI: 10.1590/SO100-720320150005286 - volume 37 - Novembro 2015
Maria Aparecida Cardoso De Souza, Tházio Henrique Soares Cardoso De Souza, Ana Katherine Da Silveira Gonçalves
A morte materna é evento trágico que acomete a mulher durante o processo fisiológico da reprodução. Constitui um indicador da inequidade existente entre os gêneros e está inversamente associada ao grau de desenvolvimento humano1. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que em 2010 cerca de 290 mil mulheres no mundo morreram durante a gestação e o parto. Esse número representa um declínio de 47% em relação aos níveis encontrados em 1990, mas está distante da 5ª meta dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio de redução de 75% das mortes maternas até 2015. A maioria dessas mortes está concentrada nos países em desenvolvimento e é decorrente da falta de acesso a cuidados de rotina adequados e cuidados de emergência quando necessários2 3.
Em se tratando de mortalidade materna (MM), a qual é definida como "o óbito de mulheres durante a gravidez, parto ou puerpério, resultante de complicações surgidas ou agravadas no período, ou por medidas tomadas em relação a essas", no âmbito brasileiro, embora haja controvérsias, a estatística sobre esse dado epidemiológico apresenta-se estimada em torno de 73 mortes para cada 100 mil nascidos vivos; no entanto, os dados ainda se mostram pouco disponíveis sobre a situação da MM3 4. Apesar dos esforços mundiais dirigidos para seu controle, ainda permanece como um dos grandes problemas na saúde pública mundial4 5.
No que se refere aos objetivos do Millennium Development Goals , em alguns países algum progresso foi alcançado, mas existe um alentecimento na maioria dos países cuja mortalidade ainda se demostra elevada, como no Brasil: os dados estatísticos oficiais sobre MM tendem a permanecer estagnados há alguns anos e, portanto, é necessário maximizar os esforços para melhorar índices de saúde materna e, assim, evitar um número maior de mortes no país6.
Levando-se em conta as deficiências quantitativas e qualitativas das informações sobre MM, torna-se importante fonte de informações o estudo de mulheres que sobreviveram às severas complicações da gravidez. Para cada caso de morte materna, um maior número de mulheres sobrevive a complicações graves, podendo apresentar sequelas permanentes. Seus recém-natos também apresentam alta morbimortalidade. Tal grupo de mulheres é importante para o melhor entendimento da evolução de uma gravidez normal, passando por uma complicação grave até a morte materna, além de possibilitar acesso às informações sobre seu atendimento7.
Nesse contexto, introduz-se o termo "near miss " materna, ou quase perda, o qual foi adaptado pelas ciências médicas de um conceito usado na indústria aeronáutica que descreve um evento de quase colisão entre aeronaves por aproximação indevida, e que apenas não ocorreu por sorte ou por manejo adequado8. Já para o estudo de morbidade materna, a terminologia surgiu como um complemento útil para a investigação das mortes maternas, sendo definida como uma mulher que quase morreu, porém sobreviveu a uma complicação que ocorreu durante a gravidez, parto ou puerpério ou na interrupção da gravidez9.
Já que near miss materna ocorre em número muito maior do que as mortes maternas, o seu estudo permite uma quantificação mais robusta e uma conclusão sobre os fatores de risco e determinantes da vida. Vários estudos têm sugerido que a identificação de fatores de risco de grave morbidade pode contribuir para a redução da MM, verificando os fatores que são modificáveis por intervenções médicas e de saúde públicas adequadas10.
Esse desfecho está associado a alguns fatores de risco que estão diretamente relacionados às condições de vida de uma população, como fatores sociais (idade, raça, estado civil, escolaridade e padrão socioeconômico). Por outro lado, analisando-se o perfil das intervenções terapêuticas requeridas para a assistência de mulheres com morbidade materna grave, observa-se que a maior parte dessas mulheres não demandou assistência que envolvesse recursos materiais maiores do que o previsto para a assistência obstétrica de boa qualidade, tendo sido necessária maior vigilância e atenção, o que efetivamente depende da formação do obstetra e das habilidades da equipe11.
Além disso, demandas propedêuticas e terapêuticas especiais podem representar uma barreira para a assistência de mulheres com complicações graves, especialmente em maternidade ou centros de referência dissociados de hospitais gerais ou em locais com recursos limitados12. Assim como o papel da terapia intensiva obstétrica no combate à MM, evitando que as pacientes com morbidade grave ou quadros de near miss progridam para a morte materna. A probabilidade de uma mulher durante o ciclo grávido-puerperal ser admitida em uma unidade de terapia intensiva (UTI) é bem maior do que a de uma mulher jovem, não grávida, estimando-se que 0,1 a 0,9% das gestantes desenvolvem complicações requerendo o internamento em UTI. O prognóstico dessas pacientes comumente é bom, requerendo, em muitos casos, apenas intervenções de pequeno porte, com baixas taxas de mortalidade, em geral inferiores a 3%13.
Em se pensando na temática, um estudo observou que em muitos casos de morte materna em países subdesenvolvidos as pacientes chegavam já sem possibilidade de assistência aos serviços de referências, sendo esse "atraso" um dos fatores que diferenciava os cuidados nesses países do cuidado oferecido nos países desenvolvidos14.
Nesse contexto, o estudo procurou avaliar os fatores determinantes da morbimortalidade em uma unidade de terapia intensiva obstétrica (UTIO) de um hospital universitário.
Estudo descritivo de corte transversal que incluiu 492 pacientes internadas na UTI materna de hospital universitário durante o ano de 2014.
Estabeleceram-se como critérios de inclusão para o estudo das pacientes: gestante ou puérpera internadas na UTIO no período de um ano e que se enquadraram na classificação de morbidade materna grave e near miss materna. A indisponibilidade do prontuário no período da coleta dos dados e as mulheres que não tiveram alta hospitalar até o período final da coleta de dados foram os critérios de exclusão do estudo. Posteriormente à determinação dos critérios de inclusão e exclusão, as mulheres elegíveis foram convidadas a participar do estudo. Após todos os esclarecimentos, as mulheres que desejaram participar do estudo assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
O protocolo de pesquisa foi avaliado e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Universitário Onofre Lopes (CEP - HUOL), sob o número 15151813.7.0000.5292. A coleta dos dados das pacientes foi realizada com o uso de instrumento elaborado pelo autor, adaptado do modelo usado pela Rede Nacional de Vigilância da Morbidade materna grave, instituída em 2009, e que contempla dados de identificação, sociodemográficos e relacionados à situação clínica e obstétrica das pacientes. As informações das variáveis categóricas foram pré-codificadas e as variáveis contínuas expressas em seu próprio valor numérico e no momento da análise dos resultados, algumas dessas foram, então, categorizadas. Esses formulários foram devidamente armazenados em pastas de arquivo específicas, antes e depois da digitação e análise, sob a responsabilidade do próprio pesquisador, que os preencheu em diferentes momentos juntamente com os assistentes de pesquisa.
Inicialmente, os dados gerados pela pesquisa foram codificados e registrados em planilha do Microsoft Office Excel 2013. Em seguida, foi construído um Banco de Dados (BD) associado a programas de análise estatística. A partir disso, desenvolveu-se a análise exploratória dos dados, descrevendo as médias e desvios padrão das variáveis quantitativas envolvidas no estudo, bem como de frequências relativas das variáveis categorizadas. Em seguida, procederam-se ao teste do χ2clássico com o intuito de verificar possíveis associações entre as variáveis dependentes com o desfecho, como as características sociodemográficas e clínicas, comparando-se os grupos de morbidade materna grave e near miss . Considerou-se o nível de significância de 5% para todos os testes. O programa estatístico utilizado foi o GraphPad Prism 6.
No período de um ano (outubro de 2013 a setembro de 2014), correspondente à coleta de dados sobre a ocorrência de casos de morbidade materna grave na instituição, 492 mulheres foram admitidas na UTIO e ocorreram 12 mortes maternas. De acordo com os critérios modificados por Geller et al.15, que utilizam 5 fatores para avaliação de morbidade materna grave, foram identificados 42 como morbidade materna near miss (casos) e 450 como outras morbidades graves (controles), com uma proporção de 11 controles para cada caso.
As características dos casos clínicos estudados, de acordo com a classificação entre morbidade materna near miss e outra morbidade materna grave são apresentadas nas Tabelas 1 e 2. Foi observada diferença significativa entre os subgrupos, no que se refere a raça, estado civil, escolaridade, procedência, renda familiar, paridade, condição clínica, número de consultas pré-natal e via de parto (Tabela 1).
A identificação de mulheres portadoras de morbidade materna near miss ocorreu em idade média próxima à das pacientes com morbidade materna grave (27,1±7,2 versus 26,5±8,7). Com relação às condições sociodemográficas, a raça não branca apresentou um risco relativo maior para pacientes near miss materna em comparação às pacientes com morbidade materna grave, com odds ratio (OR) 2,5; razão de prevalência(RP) 2,3 e intervalo de confiança de 95% (IC95%) 1,2-4,9. Além disso, maior risco para desenvolver a condição de near miss materna foi encontrado em pacientes casadas (OR=7,9; RP=7,1; IC95% 2,4-26,1), com escolaridade até o 2º grau incompleto (OR=3,1; RP=2,8; IC95% 1,6-6,0), procedente do interior (OR=4,6; RP=4,0; IC95% 2,1-10,0) e com renda familiar menor que um salário mínimo (OR=7,0; RP=5,5; IC95% 3,6-13,6) (Tabela 1).
As condições clínicas associadas ao risco relativo significativo para o desenvolvimento de near miss materna foram: nuliparidade (OR=3,1; RP=2,8; IC95% 1,2-7,5), distúrbios hipertensivos gestacionais (OR=8,0; RP=6,8; IC95% 3,6-17,9), a realização do pré-natal (OR=5,0; RP=4,2; IC95% 2,5-9,7) e a via de parto cesárea (OR=39,2; RP=31,2; IC95% 9,3-164,5). Já a condição de puerpério não se mostrou, no estudo, uma condição determinante para near miss (Tabela 2).
Com relação aos fatores determinantes primários de morbidade grave, observou-se que houve maior frequência de casos near miss com distúrbios hipertensivos (50,0%), seguido de sepse grave (23,8%) e da hemorragia grave (21,4%) (Tabela 3).
A near miss em nosso estudo apresentou uma frequência (9,0%) semelhante à encontrada na literatura entre 0,04 e 15%3, a depender do critério utilizado. Em nosso estudo foram utilizados os critérios propostos por Mantel ou Waterstone ou modificados por Geller et al.15 18.
Essa frequência encontrada de paciente near miss internada na UTI materna ocorreu durante o período de um ano, no qual houve 12 óbitos maternos, representando um valor de razão near miss /mortalidade materna grave considerável (0,09). Esse resultado é discrepante do encontrado em um estudo nacional publicado em 201219.
Alguns estudos apresentaram considerações sobre os extremos de idade como condição associada a um maior risco de morbidade materna grave e near miss materno15 20 21, o que não foi encontrado em nossa casuística, uma vez que a frequência relativa de near miss materno permaneceu maior, entre 20 e 40 anos. Esses dados estão em concordância com a literatura, demostrando que o risco de desenvolver near miss materna é maior nos extremos da idade, tanto o inferior (<15 anos) quanto o superior (>35 anos), estando principalmente aumentado nesse último22.
Baseado nas definições internacionais, as mulheres em idade reprodutiva estão na faixa etária de 15 a 49 anos. Dessa forma, as mulheres menores de 15 anos não foram incluídas no banco de dados, não podendo, portanto, serem avaliadas em relação ao risco de near miss materna para correlacionar e comparar com os dados fornecidos na literatura para essa idade. É possível que características regionais da população tenham influenciado o resultado23 24.
Avaliando ainda os fatores sociodemográficos associados à ocorrência de near miss , observamos também que as variáveis raça não branca, estado civil casada, escolaridade baixa, renda familiar baixa e pacientes provenientes do interior aumentaram significativamente o risco relativo do desfecho. Esses dados se encontram em concordância com o que foi relatado na literatura, sendo variáveis associadas com risco significante para near miss 25.
Alguns argumentos que poderiam explicá-los: no Brasil, a miscigenação racial é alta e a raça foi dicotomizada em branca ou não branca, o que pode ter contribuído para aumentar as diferenças entre grupos, fazendo com que obtivéssemos uma maior proporção de não branca quando comparada à raça branca. Quanto ao estado civil e ao baixo nível socioeconômico, um estudo qualitativo realizado em famílias de baixa renda relatou uma influência negativa do parceiro e dos membros da família sobre a decisão da mulher em procurar cuidados médicos quando ela apresenta sintomas, ocasionando, assim, o atraso em procurar o serviço hospitalar e desencadeando uma demora no diagnóstico e tratamento de doenças graves26 29.
Em relação às condições clínicas e obstétricas associadas, destacamos ser esse um assunto de grande importância. Essa análise das características clínico-obstétricas associadas à morbidade materna grave e near miss materna demonstradas na Tabela 3 é ponto fundamental do trabalho. São analisados quesitos importantes e apresentados com significância estatística, necessitando de uma melhor abordagem, pois demonstram potencial para contribuir com a melhora na assistência obstétrica, trazendo consigo modificações nos prognósticos gestacionais, evitando assim maiores complicações e desfechos desfavoráveis27 30.
Foram encontradas as variáveis doenças hipertensivas gestacionais, realização de pré-natal e via de parto cesárea como as de maior risco de evolução para near miss . Em relação à presença de hipertensão na gestação, em estudo brasileiro realizado no estado de São Paulo, em uma maternidade terciária no município de Campinas, São Paulo, foi descrita uma frequência de hipertensão associada à morbidade materna grave em 96% das pacientes20. Outros estudos concluem que atualmente as síndromes hipertensivas ainda permanecem como causa significativa de mortalidade entre as gestantes, constituindo a principal causa de mortalidade materna obstétrica direta em diversos locais24 25, sendo nosso estudo concordante com a literatura.
Em paralelo a isso, um tema bastante pertinente é o risco de near miss em pacientes cujo parto foi cesárea, considerando-se a elevada e crescente frequência da intervenção cesariana nas gestantes brasileiras, chegando a 52,0% dos partos segundo dados do Ministério da Saúde, em 201031. Em nosso estudo, a realização do parto cesárea esteve associada com um RR 31,25 vezes maior para aumento da morbidade materna grave ou near miss , o que encontra respaldo em outras publicações, porém apresentando, nosso estudo, um RR bem mais elevado26. Isso se justifica pelo elevado índice de cesarianas ocorridas na maternidade, devido à elevada ocorrência de atendimento médico obstétrico para pacientes de alto risco, já que esse serviço é referência para as gestantes ou puérperas de todo o estado, que apresentem complicações do parto e do pós parto.
Em um estudo envolvendo aproximadamente 370 mil mulheres holandesas, um risco significante de 5,2 foi encontrado para a evolução de near miss em pacientes que tinham sido submetidas a uma cesariana em uma gravidez anterior e de 5,9 para as mulheres submetidas a uma cesariana eletiva na gravidez atual. É plausível inferir que o risco para evolução de morbidade materna grave associada a ser submetida a esse procedimento, incluindo ainda os mais elevados riscos de infecção, hemorragia, tromboembolismo ou complicações, justifica os resultados encontrados32 33.
Em relação às consultas de pré-natal das pacientes com near miss em nosso estudo, o RR de evoluir para near miss materna de 4,25 vezes maior em pacientes que realizam o pré-natal pode ter sido influenciado pelo elevado número de consultas de pré-natal de alto risco realizado no hospital de referência. Além disso, o aumento da cobertura pré-natal na atenção primária no Brasil, provavelmente devido à expansão das equipes da Estratégia de Saúde da Família pode também explicar o número de pacientes com consultas de pré-natal preconizadas pelo Ministério da Saúde34 35.
Até o momento, não são muitos os estudos que avaliaram os fatores associados à presença de morbidade materna grave e near miss , e a nível nacional, o nosso estudo é um dos poucos a realizar essa análise, o que o torna importante para contribuir com o assunto. Os resultados encontrados podem vir a auxiliar no estabelecimento de políticas públicas e estratégias na assistência com o intuito de intervir significativamente na problemática da morbidade e mortalidade materna no Brasil36 38.
Além disso, um estudo que permita também a avaliação qualitativa da situação das pacientes acometidas por esse desfecho terá grande importância na contribuição para o estudo sobre near miss , contribuindo para esclarecer alguns questionamentos sobre o tema. Por isso, indubitavelmente, a percepção e a descrição das mulheres que sofreram eventos agudos caracterizados como morbidade materna grave e near miss devem ser consideradas em estudos posteriores.
Dessa forma, reforça-se a importância da realização de pré-natal para identificação de riscos potenciais, garantia de um suporte nutricional à gestante, tratamento de doenças e estabelecimento de programa de imunização materna, assim como uma melhor assistência no que tange aos aspectos clínicos das pacientes, objetivando diminuir o risco obstétrico e neonatal.