Revista Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia

Limites na investigação imunológica e genética em aborto recorrente

DOI: S0100-72032015000300101 - volume 37 - Março 2015

Rosiane Mattar, Evelyn Trainá, Silvia Daher

Abstract


Full Text

O aborto espontâneo de repetição (AER) é definido como a ocorrência de três ou mais abortamentos espontâneos e consecutivos e usualmente se refere a perdas no primeiro trimestre. Ocorre em cerca de 0,6 a 1,0% dos casais1 , 2.

 

Até hoje a causa não pode ser determinada na maioria dos casos. Fatores de risco para um novo abortamento podem ser identificados. Entretanto, a força da associação com aborto recorrente não é clara para todos os fatores3. Investigações para o aborto recorrente conduzem a achado de anormalidade em dois terços dos casos, sem que se tenha certeza se essa anormalidade realmente tenha relação com a causa da perda2.

 

Assim, a questão que permanece não resolvida é: quais são os testes diagnósticos que deveriam ser usados na prática clínica diária? Racionalmente, os exames com finalidade diagnóstica só deveriam ser realizados se pudessem melhorar o prognóstico de uma próxima gravidez ou se a causa determinada por eles pudesse ser efetivamente tratada. O aborto recorrente, entretanto, determina desespero, frustração e tristeza ao casal que deseja uma resposta sobre qual a razão da perda gestacional e, assim, a maioria das investigações e dos tratamentos propostos aos casais não são baseados em evidências.

 

Nas ultimas décadas dois aspectos têm trazido novidades ao meio científico, mas estão também associados a muita controvérsia em relação ao seu valor na pesquisa e tratamento do aborto recorrente: os fatores genéticos e imunológicos.

 

Fatores genéticos

A anormalidade cromossômica numérica é a causa mais frequente de abortamento precoce esporádico. Pelo cariótipo de bandas estima-se que cerca de metade dos abortamentos precoces sejam devidos a anormalidades cromossômicas. Uma recente pesquisa com hibridização genômica comparativa microarray indicou que, na verdade, 80% dos abortamentos esporádicos precoces se devem a anormalidades cromossômicas no embrião.

Esse achado levou ao estudo da formação cromossômica dos casais com AER. Baseados na análise de 22.199 casais, De Braekeleer e Dao4concluíram que o índice de rearranjos estruturais cromossômicos em casais com história de dois ou mais abortos espontâneos era 4,7%.

Entretanto, existe dúvida sobre o papel que essas anormalidades desempenham no futuro obstétrico do casal. Em pesquisa recente foi verificado índice de sucesso gestacional de 31,9% na primeira gravidez ocorrida após o diagnóstico de translocação em um dos pais, bem menor do que o índice de 71,7% observado em casais com cariótipo normal, levando os autores a concluir que o prognóstico de casais com translocação é ruim2. Por outro lado, existem estudos que mostraram índices de gravidez com sucesso em casais com AER e translocação recíproca, translocação Robertsoniana e cariótipo normal de 83,0, 82,0 e 84,1%, respectivamente, demonstrando chances elevadas e semelhantes de gravidez saudável5.

Para o estudo do fator genético, pode-se lançar mão da análise do material de aborto e/ou dos pais.

Estudo do cariótipo fetal

O estudo do cariótipo do material de aborto nem sempre é possível, uma vez que o tecido a ser analisado não tem vitalidade e o processo de cultura pode não ter sucesso. Quando possível, entretanto, pode diagnosticar anormalidades cromossômicas numéricas e estruturais, identificando a causa do aborto atual.

Técnicas modernas como hibridização genômica comparativa (array - CGH), hibridização in situ fluorescente (FISH) e reação em cadeia da polimerase com fluorescência quantitativa (QF-PCR) podem identificar desordens genéticas submicroscópicas responsáveis pelo abortamento em estudo, sem necessitar da cultura celular e podendo ser realizado em material estocado.

O valor do conhecimento do cariótipo do aborto é questionável, pois não melhora o prognóstico de futuras gestações e nem indica terapêutica específica. A vantagem seria poder explicar aos pais a razão para a ocorrência daquele aborto específico.

Estudo do cariótipo do casal

Esse estudo é realizado para identificar anormalidades cromossômicas estruturais em um dos progenitores. Em aproximadamente 2 a 5% dos casais com AER, um dos pais carrega uma anomalia estrutural cromossômica, mais comumente uma translocação recíproca ou Robertsoniana6.

Embora esses carreadores de translocação sejam fenotipicamente normais, teriam maior risco de abortamentos e poderiam vir a ter uma criança com malformação congênita secundária à cromossomopatia não balanceada.

Mas na realidade, um estudo alemão5 relatou que casais com translocação balanceada têm baixo risco (0,8%) de gestações com cariótipo não balanceado após o segundo trimestre e que a chance de terem uma criança saudável é de 83%.

Em estudo retrospectivo desenvolvido na Inglaterra, a translocação balanceada foi encontrada em 1,9% dos pais com aborto recorrente7, mas só um número desprezível de translocações não balanceadas foi detectado em conceptos desses casais.

Levando em consideração o custo financeiro do exame, o protocolo estabelecido pelo Royal College8sugere que o cariótipo dos pais não seja rotineiro, mas justificável quando identificada anormalidade cromossômica no produto da concepção. Ele também deveria ser solicitado se houver outro fator de risco baseado na história obstétrica e familiar.

 

Fatores imunológicos

Nos últimos anos tem sido postulado que alterações da resposta imunológica seriam a causa dos casos de abortos recorrentes de etiologia não determinada.

Dentre as causas imunológicas de perda gestacional deve-se considerar as autoimunes, principalmente a síndrome de anticorpos antifosfolípides (SAF), e as aloimunes, que se referem às diferenças imunológicas entre indivíduos da mesma espécie, no caso, entre os pais.

 

Fator autoimune

A SAF é caracterizada pela presença de anticorpos que se ligam a fosfolípides de membrana: anticorpo anticardiolipina (ACA), lupus anticoagulante (LAC), e pela molécula de β2 glicoproteínaI, responsável pela adesão da cardiolipina. Esses anticorpos promovem reação contra a célula endotelial em que há liberação de citocinas inflamatórias, com alteração da relação tromboxane-prostaciclina, resultando em mecanismo de hipercoagulabilidade com a formação de microtrombos no leito placentário.

A pesquisa do ACA é feita com o emprego do teste de ELISA, com dosagem de IgG e/ou IgM, considerando-se positivos valores maiores do que 40 GPL ou 40 MPL.

Para investigação do lúpus anticoagulante é analisada a via intrínseca da coagulação, com o teste de Russell, tempo de tromboplastina parcial ativada (TTPA) ou tempo de Kaolin (KCT). O tempo de coagulação aumentado é prova indireta da presença de LAC, devendo, nesses casos, ser complementado com plasma fresco para diferenciar de qualquer outra coagulopatia.

O anti-β2 glicoproteína I é um co-fator fosfolipídeo com propriedades anticoagulantes. Os anticorpos contra essa proteína são encontrados em cerca de 75 a 80% dos pacientes com SAF, sendo mais específico do que os tradicionais anticorpos (ACA e LAC), motivo pelo qual foi recentemente incluído nos critérios de diagnóstico dessa síndrome. Em até 10% dos casos de SAF os anti-β2 glicoproteína I são os únicos marcadores laboratoriais presentes. Títulos superiores a 20 U, para IgG e IgM, são considerados significativos em quase todas as determinações. Entretanto, devem ser sempre considerados positivos títulos maiores do que o percentil 99, determinado pelo laboratório.

O diagnóstico da SAF requer a associação de, pelo menos, um critério clínico e um critério laboratorial comprovado pelo achado positivo de dois exames com intervalo mínimo de três meses. É encontrado em 2,7 a 7,0% das mulheres com quadro de aborto recorrente9.

Com as evidências atuais quanto à boa eficácia do tratamento sobre o prognóstico de futuras gestações, há recomendação de que deveria ser proposto para todas as mulheres com abortamento de primeiro trimestre de repetição o rastreamento para SAF primária8.

Fator aloimune

A hipótese para explicar a perda gestacional por esse mecanismo seria o desequilíbrio na resposta imunológica na interação materno-fetal em razão da presença dos antígenos paternos.

Como fundamento desse desequilíbrio haveria compatibilidade de antígenos leucocitários entre o casal, ausência de anticorpos leucocitotóxicos maternos, ausência de anticorpos bloqueadores maternos. Defeitos nos fatores imunossupressores moleculares (citocinas e fatores de crescimento) na decídua e aumento de células NK sistêmico e local também têm sido relacionados à perda gestacional.

Na prática clínica, tem sido proposta a avaliação da presença desse fator na etiologia do AER por meio da reação cruzada (cross-match), contagem de células NK e sua ativação e a dosagem sanguínea de citocinas e seu polimorfismo de genes de citocinas.

A reação de cross-match foi desenhada para avaliar o reconhecimento materno dos antígenos paternos. O fundamento da reação seria observar a presença de morte celular ao se juntar soro materno aos linfócitos paternos. Se a reação se mostrasse positiva seria porque o reconhecimento existiria e a reação imunológica da mãe frente à presença dos antígenos paternos no concepto seria favorável, caso a reação se mostrasse negativa seria esperado mau resultado no desencadeamento da resposta imunológica materna à implantação do embrião e ocorreria o abortamento. Nesse caso, haveria a indicação da imunoterapia.

Seu uso foi iniciado para a investigação do aborto recorrente na década de 1990, mas o fato de que a reação se mostrava negativa em mais do que 90% dos casais com perda gestacional e também na maioria dos que apresentam história de sucesso gestacional, aliado ao fato de que não se observou melhora do prognóstico gestacional com o uso do tratamento imunoterápico advogado, fez com que esse teste deixasse de ser recomendado e seu uso fosse abandonado na pesquisa do aborto recorrente na maioria dos centros10 , 11.

A contagem de células NK no sangue periférico e no endométrio de mulheres com quadro de aborto de repetição ainda é um conhecimento em evolução. Nenhum benefício foi provado até o momento. Também ainda não se conseguiu identificar relação causal entre os resultados da contagem de células NK e o abortamento.

As células NK são linfócitos que expressam em sua superfície marcadores CD56 (subtipos CD56+Bright CD56+Dim) e CD16 e não há dúvida de que as células NK têm papel fundamental no estabelecimento da gravidez inicial.

Embora estejam presentes em vários tecidos, ficam especialmente concentradas no útero, onde são as principais células do sistema imunológico. As células NK do útero (uNK) aumentam muito, indo de 10% das células estromais na fase proliferativa a 20% na fase secretora e atingindo 30% na gravidez precoce. Em tese, as células uNK regulam a invasão trofoblástica por citotoxicidade direta e produção de citocinas.

O estudo das células NK a nível endometrial requer procedimento invasivo. Recentes estudos, no entanto, mostram correlação entre as uNK e as células NK do sangue periférico, pois são recrutadas diretamente do sangue periférico.

A contagem de células NK em sangue periférico no AER foi primeiramente descrito por Beer et al. em 199612, referindo que mulheres com altos níveis de células NK (acima de 18%) não apresentavam sucesso gestacional. Recentes pesquisas demonstraram que 15 a 25% das mulheres com aborto recorrente têm altos níveis de células NK13. Também já foi referido que pacientes com AER apresentavam células sanguíneas NK com atividade preconcepcional e citotoxicidade mais elevada, maior expressão de CD69 e baixa expressão de CD94. A citometria de fluxo pode oferecer a contagem de células NK, seus subtipos e estado de ativação.

Apesar desses relatos, ainda não se conseguiu provar que os níveis de células NK sejam a causa do abortamento recorrente. Assim, com os conhecimentos atuais, a contagem de células NK não deve ser oferecida como parte da rotina de investigação de um casal com AER. Se for realizada, os casais devem ser avisados de sua natureza experimental.

Quanto à dosagem sanguínea de citocinas e polimorfismo de genes de citocinas, sabe-se que as citocinas são moléculas mediadoras produzidas por células envolvidas na reposta imunológica. Em circunstâncias normais elas promovem o crescimento e diferenciação do trofoblasto. O padrão da reposta local depende da interação entre o padrão de citocinas e os receptores da superfície celular.

Uma das causas de AER seria a produção não equilibrada de citocinas pelas células maternas frente aos antígenos paternos.

Certos polimorfismos de genes de citocinas podem influenciar o nível de produção de citocinas e diversos estudos mostraram associação entre alguns desses polimorfismos e a ocorrência de AER.

Algumas clínicas incluem em seu protocolo de assistência ao aborto recorrente, a avaliação de citocinas e o padrão de células Treg. Estuda-se o perfil de citocinas in vitro através do uso de células T estimuladoras. Um dos testes mais usados é o Th1 Th2 Intracellular Cytokine Assay, que avalia níveis das citocinas Il-6, TNF-α e IFN-γ, considerando-se positivo o achado do perfil Th1.

Diversos kits de estudo de DNA e RNA podem identificar polimorfismos de genes que regulariam a produção das citocinas. Embora existam vários estudos tentando associar polimorfismos que determinem predominância de padrão inflamatório à perda gestacional, ela ainda não foi confirmada suficientemente em base experimental para ser conduzida à prática clínica.

Desse modo, baseado nas melhores evidências disponíveis, a avaliação de citocinas e de seus polimorfismos genéticos não deve fazer parte da rotina de pesquisa do aborto recorrente e não é recomendada por nenhum protocolo das principais associações obstétricas nacionais e internacionais14.

Em relação aos fatores aloimunes, em revisão realizada em 2006 pela Cochrane Library, com o objetivo de avaliar os diversos estudos publicados a respeito do uso das diferentes investigações e os tipos de tratamento para casais com AER, pode-se concluir que nenhum dos tratamentos oferecidos, atualmente, promove aumento significativo da taxa de nascidos vivos10.

Tais procedimentos (imunização com linfócitos paternos, imunoglobulina endovenosa, corticoterapia), por não oferecerem efeitos benéficos com resultados semelhantes a qualquer placebo, não deveriam ser oferecidos a pacientes com AER. Da mesma forma, o uso dos testes imunológicos que vinham sendo advogados para o uso dessas terapias também deveria ser abandonado11.

Concluímos que, em relação aos limites dos testes imunológicos e genéticos na investigação do aborto recorrente, há necessidade de prosseguir com a pesquisa em base experimental e epidemiológica, para que se possa, com base em evidências científicas reais, definir testes adequados para investigação e tratamento dessa entidade clínica.


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13 King K, Smith S, Chapman M, Sacks G. Detailed analysis of peripheral blood natural killer (NK) cells in women with recurrent miscarriage. Hum Reprod.. 2010;25(1):52-58


14 . . Recurrent pregnancy loss. 2014;:38-45